Economia

As Metamorfoses no Mundo do Trabalho

Observa-se, no universo do mundo do trabalho no capitalismo contemporâneo, uma múltipla processualidade: de um lado verificou-se uma desproletarização do trabalho industrial, fabril, nos países de capitalismo avançado, com maior ou menor repercussão em áreas industrializadas do Terceiro Mundo.

Em outras palavras, houve uma diminuição da classe operária industrial tradicional. Mas, paralelamente, efetivou-se uma expressiva expansão do trabalho assalariado, a partir da enorme ampliação do assalariamento no setor de serviços; verificou-se uma significativa heterogeneização do trabalho, expressa também através da crescente incorporação do contingente feminino no mundo operário; vivencia-se também uma subproletarização intensificada, presente na expansão do trabalho parcial, temporário, precário, subcontratado, “terceirizado”, que marca a sociedade dual no capitalismo avançado, da qual os gastarbeiters na Alemanha e o lavoro nero na Itália são exemplos do enorme contingente de trabalho imigrante que se dirige para o chamado Primeiro Mundo, em busca do que ainda permanece do welfare state, invertendo o fluxo migratório de décadas anteriores, que era do centro para a periferia.

O mais brutal resultado dessas transformações é a expansão sem precedentes na era moderna, do desemprego estrutural, que atinge o mundo em escala global. Pode-se dizer, de maneira sintética, que há uma processualidade contraditória que, de um lado, reduz o operariado industrial e fabril; de outro, aumenta o subproletariado, o trabalho precário e o assalariamento no setor de serviços. Incorpora o trabalho feminino e exclui os mais jovens e os mais velhos. Há, portanto, um processo de maior heterogeneização, fragmentação e complexificação da classe trabalhadora.

Vamos procurar, nas páginas que seguem, dar alguns exemplos deste múltiplo e contraditório processo, em curso no mundo do trabalho. Faremos isso fornecendo alguns dados somente com o objetivo de ilustrar estas tendências.

Comecemos pela questão da desproletarização do trabalho fabril, industrial. Na França, em 1962, o contigente operário era de 7,488 milhões. Em 1975, esse número chegou a 8,118 milhões e em 1989 reduziu-se para 7,121 milhões. Enquanto em 1962 ele representava 39% da população ativa, em 1989 esse índice baixou para 29,6% (dados extraídos notadamente de Economie et Statistiques, L’INSEE, in Bihr, 1990; ver também Bihr, 1991: 87-108).

Os dados evidenciam, de um lado, a retração dos trabalhadores da indústria manufatureira (e também da mineração e dos trabalhadores agrícolas). De outro lado, tem-se o crescimento explosivo do setor de serviços que, segundo o autor, inclui tanto a “indústria de serviços” quanto o pequeno e grande comércio, as finanças, os seguros, o setor de bens imóveis, a hotelaria, os restaurantes, os serviços pessoais, de negócios, de divertimentos, da saúde, os serviços legais e gerais. (Annunziato, 1989; 107).

A diminuição do operariado industrial também se efetivou na Itália, onde pouco mais de um milhão de postos de trabalho forma eliminados, havendo uma redução da ocupação dos trabalhadores na indústria, de 40% em 1980, para pouco mais de 30%, em 1990 (Stuppini, 1991:50).

Outro autor, num ensaio mais prospectivo, e sem a preocupação da demonstração empírica, procura indicar algumas tendências em curso, decorrentes da revolução tecnológica: lembrar que projeções do empresariado japonês apontam como objetivo “eliminar completamente o trabalho manual da indústria japonesa até o final do século. Ainda que possa haver nisto certo ufanismo, a exposição deste objetivo deve ser levada a sério” (Schaff, 1990; 28).

Em relação ao Canadá, transcreve informações do Science Council of Canada Report (n.33, 1982) “que prevê a moderna taxa de 25 % de trabalhadores que perderão seu emprego até o final do século em consequência da automação”. E, referindo-se às previsões norte-americanas, alerta para o fato de que “serão eliminados 35 milhões de empregos até o final do século em consequência da automação” (Schaff, 1990: 28).

Pode-se dizer que nos principais países industrializados da Europa Ocidental, os efetivos de trabalhadores ocupados na indústria representam cerca de 40% da população ativa no começo dos anos 40. Hoje, sua proporção se situa próxima dos 30%. Calcula-se que baixará a 20 ou 25% no começo do próximo século (Gorz, 1990a e 1990b).

Esses dados e tendências evidenciam uma nítida redução do proletariado fabril, industrial, manual, especialmente nos países do capitalismo avançado, quer em decorrência do quadro recessivo, quer em função da automação da robótica e da microeletrônica, gerando uma monumental taxa de desemprego estrutural.

Paralelamente a essa tendência, há outra também extremamente significativa, dada pela subproletarização do trabalho, presente nas formas de trabalho precário, parcial, temporário, subcontratado, “terceirizado”, vinculados à “economia informal”, entre  tantas modalidades existentes. Como diz Alain Bihr (1991:89), essas categorias de trabalhadores têm em comum a precariedade do emprego e da remuneração; a desregulamentação das condições de trabalho em relação às normas legais vigentes ou acordadas e a consequente regressão dos direitos sociais, bem como a ausência de proteção e expressão sindicais, configurando uma tendência à individualização extrema da relação salarial.

A título de exemplo: na França, enquanto houve uma redução de 501 mil empregos por tempo completo, entre 1982 e 1988 deu-se, no mesmo período, o aumento de 111 mil empregos em tempo parcial (Bihr, 1990). Em outro estudo, o mesmo autor acrescenta que essa forma de trabalho “a típica” não para de se desenvolver depois da crise: entre 1982 e 1986, o número de assalariados em tempo parcial aumentou em 21,35% (Bihr, 1991: 51). Na mesma direção segue este relato: “A atual tendência dos mercados de trabalho é reduzir o número de trabalhadores ‘centrais’ e empregar cada vez mais uma força de trabalho que entra facilmente e é demitida sem custos… Na Inglaterra, os ‘trabalhadores flexíveis’ aumentaram em 16%, alcançando 8,1 milhões entre 1981 e 1985, enquanto os empregos permanentes caíram em 6%, ficando em 15,6 milhões… Mais ou menos no mesmo período, cerca de um terço dos dez milhões de novos empregos criados nos EUA estavam na categoria ‘temporário’” (Harvey, 1992:144).

André Gorz acrescenta que aproximadamente 35 a 50% da população trabalhadora britânica, francesa, alemã e norte-americana encontra-se desempregada ou desenvolvendo trabalhos precários, parciais, que Gorz denominou de “proletariado pós-industrial”, expondo a dimensão real daquilo que alguns chamam de sociedade dual (Gorz, 1990: 42 e 1990a).

Ou seja, enquanto vários países de capitalismo avançado viram decrescer os empregos em tempo completo, paralelamente assistiram a um aumento das formas de subproletarização, através da expansão dos trabalhadores parciais, precários, temporários, subcontratados, etc. Segundo Helena Hirata, 20% das mulheres no Japão, em 1980, trabalhavam em tempo parcial em condições precárias. “Se as estatísticas oficiais contavam 2.560 milhões de assalariados em tempo parcial em 1980, três anos depois a Revista Economisto de Tóquio estimava em 5 milhões o conjunto das assalariadas trabalhando em tempo parcial.” (Hirata, 1986: 9).

Desse incremento da força de trabalho, um contingente expressivo é composto por mulheres, o que caracteriza outro traço marcante das transformações em curso no interior da classe trabalhadora. Esta não é “exclusivamente” masculina, mas convive, sim, com um enorme contingente de mulheres, não só em setores como o têxtil, onde tradicionalmente sempre foi expressiva a presença feminina, mas em novos ramos, como a indústria microeletrônica, sem falar do setor de serviços. Essa mudança na estrutura produtiva e no mercado de trabalho possibilitou também a incorporação e o aumento da exploração parcial, em trabalhos “domésticos” subordinados ao capital (veja-se o exemplo da Benetton), de tal modo que, na Itália, aproximadamente um milhão de postos de trabalho, criados nos anos 80, majoritariamente no setor de serviços, mas com repercussões também nas fábricas, foram ocupados por mulheres (Stuppini, 1991:50). Do volume de empregos em tempo parcial gerados na França entre 1982 e 1986, mais de 880% foram preenchidos pela força de trabalho feminina (Bihr, 1991: 89). Isso permite dizer que esse contingente tem aumentado em praticamente todos os países e, apesar das diferenças nacionais, a presença feminina representa mais de 40 % do total da força de trabalho em muitos países capitalistas avançados (Harvey, 1992: 146 e Freeman, 1986: 5).

A presença feminina no mundo do trabalho nos permite acrescentar que, se a consciência de classe é uma articulação complexa, comportando identidades e heterogeneidades, entre singularidades que vivem uma situação particular no processo produtivo e na vida social, na esfera da materialidade e da subjetividade, tanto a contradição entre o indivíduo e sua classe, quanto aquela que advém da relação entre classe e gênero, tornaram-se ainda mais agudas na era contemporânea. A classe-que-vive-do-trabalho é tanto masculina quanto feminina. É portanto, também por isso,  mais diversa, heterogênea e complexificada. Desse modo, uma crítica do capital, enquanto relação social, deve necessariamente apreender a dimensão de exploração presente nas relações capital/trabalho e também aquelas opressivas presentes na relação homem/mulher, de modo que a luta pela constituição do gênero-para-si-mesmo possibilite também a emancipação do gênero mulher.

Além da desproletarização relativa do trabalho industrial, da incorporação do trabalho feminino, da subproletarização do trabalho, através do trabalho parcial, temporário, tem-se, como outra variante deste múltiplo quadro, um intenso processo de assalariamento dos setores médios, decorrentes da expansão do setor de serviços. Vimos que, no caso dos EUA, a expansão do setor de serviços – no sentido amplo em que é definido pelo censo realizado pelo Departamento de Comércio daquele país – foi de 97,8% no período de 1980/1986, sendo responsável por mais de 60% de todas as ocupações (não incluído o setor governamental) (Annunziato, 1989: 107).

Na Itália, “contemporaneamente cresce a ocupação no setor terciário e no de serviços, que hoje ultrapassa 60% do total das ocupações” (Stuppini, 1991: 50). Sabe-se que essa tendência atinge praticamente todos os países centrais.

Isso permite indicar que “nas pesquisas sobre a estrutura e as tendências de desenvolvimento das sociedades ocidentais altamente industrializadas encontramos, de modo cada vez mais frequente, sua caracterização como ‘sociedade de serviços’”. (Offe, Berger, 1991: 11). Deve-se afirmar, entretanto, que a constatação do crescimento desse setor não nos deve levar à aceitação da tese das sociedades pós-industriais, pós-capitalistas, uma vez que se mantém, “pelo menos indiretamente, o caráter  improdutivo, no sentido da produção global capitalista, da maioria dos serviços. Pois não se trata de setores com acumulação de capital autônomo; ao contrário, o setor de serviços permanece dependente da acumulação de capital autônomo; ao contrário, o setor de serviços permanece dependente da acumulação industrial propriamente dita e, com isso, da capacidade das indústrias correspondentes de realizar mais-valia nos mercados mundiais. Somente quando essa capacidade se mantém para toda a economia nacional em conjunto, os serviços industriais e não-industriais (relativos a pessoas) podem sobreviver, e expandir-se” (Kurz, 1992:209).

Por fim, há ainda uma outra consequência muito importante, no interior da classe trabalhadora, que tem uma dupla direção: paralelamente à redução quantitativa do operariado industrial tradicional dá-se uma alteração qualitativa na forma de ser do trabalho, que de um lado impulsiona para uma maior qualificação do trabalho e, de outro, para uma maior desqualificação. Comecemos pela primeira. A redução da dimensão variável do capital, em decorrência do crescimento da sua dimensão constante – ou, em outras palavras, a substituição do trabalho vivo pelo trabalho morto – oferece, como tendência, nas unidades produtivas mais avançada, a possibilidade de o trabalhador aproximar-se do que Marx (1972:228) chamou de “supervisor e regulador do processo de produção”. Porém, a plena efetivação dessa tendência está impossibilitada pela própria lógica do capital. É elucidativa esta longa citação de Marx, onde aparece a referência que fizemos acima.

“O intercâmbio de trabalho vivo por trabalho objetivado (…) é o último desenvolvimento da relação de valor e da produção fundada no valor. O suposto desta produção é, e segue sendo, a magnitude de tempo imediato de trabalho, a quantidade de trabalho empregado como fator decisivo na produção da riqueza. À medida, entretanto, que a grande indústria se desenvolve, a criação da riqueza efetiva torna-se menos dependente do tempo de trabalho e da quantidade de trabalho empregados, do que frente aos agentes postos em movimento durante o tempo de trabalho, que por sua vez – su powerful effectiveness – não guarda relação alguma com o tempo de trabalho imediato que custa sua produção, mas que depende  mais do estado geral da ciência e do progresso da tecnologia, ou da aplicação desta ciência à produção. (…) A riqueza efetiva se manifesta melhor – e isto o revela a grande indústria – na enorme desproporção entre o tempo de trabalho empregado e seu produto, assim como na desproporção qualitativa entre trabalho, reduzido a uma pura abstração, e o poderio do progresso de produção vigiado por aquele. O trabalho já não aparece tanto como  encerrado no processo de produção, senão que, melhor, o homem se comporta como supervisor e regulador em relação ao processo de produção  do mesmo. O trabalhador já não introduz o objeto natural modificado, como um anel intermediário entre a coisa e ele, mas insere o processo natural que transforma em industrial, como meio entre si mesmo e a natureza inorgânica, a qual domina. Apresenta-se ao lado do processo de produção. Em lugar de ser agente principal. Nessa transformação, o que aparece como pilar fundamental da produção e da riqueza não é nem o trabalho imediato executado pelo homem nem o tempo que este trabalha, senão a apropriação de sua própria força produtiva geral, sua compreensão da natureza e seu domínio da mesma graças à sua existência como corpo social; em uma palavra, o desenvolvimento do indivíduo social. O roubo do tempo de trabalho alheio, sobre o qual se funda a riqueza atual, aparece como uma base miserável comparado com este fundamento, recém-desenvolvido, criado pela grande indústria. Logo que o trabalho, em sua forma imediata, tiver deixado de ser a grande fonte de riqueza, o tempo de trabalho deixa, e tem de deixar, de ser sua medida e, portanto, o valor de uso. O sobretrabalho da massa deixou de ser condição para o desenvolvimento da riqueza social, assim como o não trabalho de uns poucos deixa de ser a condição para o desenvolvimento dos poderes gerais do intelecto humano. Com isso, se desmorona a produção fundada no valor de troca… Desenvolvimento livre das individualidades e, por conseguinte, tem-se a não redução do tempo de trabalho necessário com vistas a criar sobretrabalho, mas, em geral, redução do trabalho necessário da sociedade a um mínimo, ao qual corresponde então a formação artística, científica, etc., dos indivíduos graças ao tempo que se torna livre e aos meios criados para todos” (idem: 227-229).

Evidencia-se, entretanto, que essa abstração era uma impossibilidade na sociedade capitalista. Como o próprio Marx esclarece, na sequência do texto: “O capital mesmo é a contradição em processo, (pelo fato de) que tende a reduzir a um mínimo de tempo de trabalho, enquanto que, por outro lado, converte o tempo de trabalho em única mediada e fonte de riqueza. Diminui, pois, o tempo de trabalho na forma de tempo de trabalho necessário, para aumentá-lo na forma de trabalho excedente; põe, portanto, em medida crescente, o trabalho excedente como condição – question de vie et de mort – do (trabalho) necessário. Por um lado desperta para a vida todos os poderes da ciência e da natureza, assim como da cooperação e do intercâmbio social, para fazer com que a criação da riqueza seja (relativamente) independente do tempo de trabalho empregado por ela. Por outro lado, mensura com o tempo de trabalho estas gigantescas forças sociais criadas desse modo e as reduz aos limites requeridos para que o valor já criado se conserve como valor. As forças produtivas e as relações sociais – umas e outras, aspectos diversos do desenvolvimento do indivíduo social  – aparecem frente ao capital unicamente como meios para produzir, fundando-se em sua mesquinha base. De fato, todavia, constituem as condições materiais para fazer saltar esta base pelos ares” (idem: 229).

Portanto, a tendência apontada por Marx – cuja efetivação plena supõe a ruptura à lógica do capital –  deixa evidenciado que, enquanto perdurar o modo de produção capitalista, não pode se concretizar a eliminação do trabalho como fonte criadora de valor, mas, isto sim, uma mudança no interior do processo de trabalho, que decorre do avanço científico e tecnológico e que se configura pelo peso crescente da dimensão mais qualificada do trabalho, pela intelectualização do trabalho social. A citação que segue é elucidativa: “…com o desenvolvimento da subsunção real do trabalho ao capital ou do modo de produção especificamente capitalista, não é o operário industrial, mas uma crescente capacidade de trabalho socialmente combinada que se converte no agente real do processo de trabalho total e, como as diversas capacidades de trabalho que cooperaram e formam a máquina produtiva total participam de maneira muito diferente no processo imediato da formação de mercadorias, ou melhor, dos produtos – este trabalha mais com as mãos, aquele trabalha mais com a cabeça, um como diretor (manager), engenheiro (engineer), técnico, etc., outro, como capataz (overloocker), um outro como operário manual direto, ou inclusive como simples ajudante – temos, que mais e mais funções da capacidade de trabalho se incluem no conceito imediato de  trabalho produtivo, e seus agentes no conceito de trabalhador coletivo, de que a oficina consiste, sua atividade combinada se realiza materialmente (materialiter) e de maneira direta num produto total que, ao mesmo tempo, é um volume total de mercadorias; é absolutamente indiferente que a função de tal ou qual trabalhador – simples elo desse trabalho coletivo – esteja mais próxima ou mais distante do trabalho manual direto”(Marx, 1978: 71-72).

O caso da fábrica automatizada japonesa Fujitsu Fanuc, um dos exemplos de avanço tecnológico, é elucidativo. Mais de quatrocentos robôs fabricam, durante as 24 horas do dia, outros robôs. Os operários, quase quatrocentos, trabalham durante o dia. Com métodos tradicionais seriam necessários cerca de 4 mil operários para se obter a mesma produção. Em média, a cada mês, oito robôs são quebrados, e a tarefa dos operários consiste basicamente em prevenir e reparar aqueles que foram danificados, o que traz um volume de trabalho descontínuo e imprevisível. Existem ainda 1.700 pessoas nos trabalhos de pesquisa, administração e comercialização da empresa (Gorz, 1990b: 28). Embora seja um exemplo de um país e de uma fábrica singulares, permite constatar, por um lado, que nem mesmo  neste exemplo  não houve a eliminação do trabalho, mas sim um processo de intelectualização de uma parcela da classe trabalhadora. Mas, nesse exemplo atípico, o trabalhador já não transforma objetos materiais diretamente, mas supervisiona o processo produtivo em máquinas computadorizadas, programa-as e repara os robôs em caso de necessidade (id. ibid.).

Supor a generalização dessa tendência sob o capitalismo contemporâneo – nele incluído o enorme contingente de trabalhadores do Terceiro Mundo – seria um enorme despropósito e acarretaria como consequência inevitável a própria destruição da economia de mercado, pela incapacidade de integralização do processo de acumulação de capital. Não sendo nem consumidores, nem assalariados, os robôs não poderia participar do mercado. A simples sobrevivência da economia capitalista estaria, esse modo, comprometida (ver Mandel, 1986: 16-17).

Também tematizando sobre a tendência em direção a uma maior qualificação ou intelectualização do trabalho, outro autor desenvolve a tese de que a imagem do trabalhador manual não mais permite dar conta do novo trabalho operário nas indústrias. Este converteu-se em vários ramos mais qualificados, o que se constata, por exemplo, na figura do operador vigilante, do técnico de manutenção, do programador, do controlador de qualidade, do técnico da divisão de pesquisa, do engenheiro encarregado da coordenação técnica e da gestão da produção. As antigas clivagens estariam sendo questionadas pela necessária cooperação entre os trabalhadores (Lojkine, 1990: 30-31).

Há, portanto, mutações no universo da classe trabalhadora, que varia de ramo para ramo, de setor para setor, etc. Desqualificou-se em vários ramos,  diminuiu em outros, como no mineiro, metalúrgico e construção naval, praticamente desapareceu em setores que foram inteiramente informatizados, como nos gráficos, e requalificou-se em outros, como na siderurgia, onde se pode presenciar  “a formação de um segmento particular de ‘operários técnicos’ de alta responsabilidade, portadores de características profissionais e referências culturais sensivelmente diversas do restante do pessoal operário. Eles se encontram, por exemplo, nos postos de coordenação nas cabines de operação a nível de altos fornos, aciaria, vaza contínua… Observa-se fenômeno similar na indústria automobilística, com a criação dos “coordenadores técnicos” encarregados de assegurar os reparos e a manutenção de instalações altamente automatizadas, assistidos por profissionais de nível inferior e de especialidades diferentes.” (idem: 32).

Paralelamente a esta tendência se acrescenta outra, dada pela  desqualificação de inúmeros setores operários, atingidos por uma gama diversa de transformações que levaram, de um lado, à desespecialização do operário industrial oriundo do fordismo e, por outro, à massa de trabalhadores que oscila entre os temporários (que não tem nenhuma garantia no emprego) aos subcontratados, terceirizados (embora se saiba que há, também, terceirização em segmentos ultraqualificados), aos trabalhadores da “economia informal”, enfim, a este enorme contingente que chega até a faixa de 50% da população trabalhadora dos países avançados, quando nele se incluem também os desempregados, que alguns chamam de proletariado pós-industrial e que preferimos denominar de subproletariado moderno.

No que se refere à desespecialização dos operários profissionais em decorrência da criação dos “trabalhadores multifuncionais”, introduzidos pelo toyotismo, é relevante lembrar que esse processo também significou um ataque ao saber profissional dos operários qualificados, a fim de diminuir seu poder sobre a produção e aumentar a intensidade do trabalho. Os trabalhadores qualificados enfrentaram esse movimento de desespecialização como um ataque à sua profissão e qualificação, bem como ao poder de negociação que a qualificação lhes conferia, realizando inclusive greves contra esta tendência (Coriat, 1992b: 41). Já nos referimos, anteriormente, ao caráter restrito da polivalência introduzida pelo modelo japonês.

A segmentação da classe trabalhadora se intensificou de tal modo que é possível indicar que, no centro do processo produtivo encontra-se o grupo de trabalhadores, em processo de retração em escala mundial, mas que permanece em tempo integral dentro das fábricas, com maior segurança no trabalho e mais inserido na empresa. Com algumas vantagens que decorrem desta “maior integração”, esse segmento é mais adaptável, flexível e geograficamente móvel. “Os custos potenciais da dispensa temporária de empregados do grupo central em época de dificuldade podem, no entanto, levar a empresa a subcontratar, mesmo para funções de alto nível (que vão dos projetos à propaganda e à administração financeira), mantendo o grupo central de gerentes relativamente pequeno” (Harvey, 1992: 144).

A periferia da força de trabalho compreende dois subgrupos diferenciados: o primeiro consiste em “empregados em tempo integral com habilidades facilmente disponíveis no mercado de trabalho, como pessoal do setor financeiro, secretárias, pessoal das áreas de trabalho rotineiro e de trabalho manual menos especializado”. Esse subgrupo tende a se caracterizar por uma alta rotatividade no trabalho. O segundo grupo situado na periferia “oferece uma flexibilidade numérica ainda maior e inclui empregados em tempo parcial, empregados casuais, pessoal com contato por tempo determinado, temporários, subcontratação e treinados com subsídio público, tendo ainda menos segurança de emprego do que o primeiro grupo periférico”. Esse segmento tem crescido significativamente nos últimos anos (conforme classificação do Institute of Personnel Management in Harvey, 1992:144).

Evidencia-se, portanto, que ao mesmo tempo em que se visualiza uma tendência para a qualificação do trabalho, desenvolve-se também intensamente um nítido processo de desqualificação dos trabalhadores, que acaba configurando um processo contraditório que superqualifica em vários ramos produtivos e desqualifica outros.

Estes elementos que apresentamos nos permitem indicar que não há tendência generalizante e uníssona, quando se pensa no mundo do trabalho. Há, isto sim, como procuramos indicar, uma processualidade contraditória e multiforme. Complexificou-se, fragmentou-se e heterogeneizou-se ainda mais a classe-que-vive-do-trabalho. Pode-se constatar, portanto, de um lado, um efetivo processo de intelectualização do trabalho manual. De outro lado, e em sentido radicalmente inverso, uma desqualificação e mesmo subproletarização intensificadas, presentes no trabalho precário, informal, temporário, parcial, subcontratado, etc. Se é possível dizer que a primeira tendência – a intelectualização do trabalho manual – é, em tese, mais coerente e compatível com o enorme avanço tecnológico, a segunda – a desqualificação –  mostra-se também plenamente sintonizada com o modo de produção capitalista, em sua lógica destrutiva e com sua taxa de uso decrescente de bens e serviços (Mészáros, 1989: 17). Vimos também que houve uma significativa incorporação do trabalho feminino no mundo produtivo, além da expressiva expansão e ampliação da classe trabalhadora, através do assalariamento do setor de serviços. Tudo isso nos permite concluir que nem o operariado desaparecerá tão rapidamente e, o que é fundamental, não é possível perspectivar nem mesmo um universo distante, nenhuma possibilidade de eliminação da classe-que-vive-do-trabalho.

Autoria: Ricardo Antunes