Literatura

Fernão Lopes

Presume-se que tenha nascido por volta de 1380, oriun­do das camadas populares, da arraia-miúda. Essa origem humilde teria inclinado Fernão Lopes a conceber o povo como um dos protagonistas desse imenso drama que é a história de uma Nação.

Aproximou-se da Corte de Avis, ainda no tempo de D. João I, ocupando cargos de confian­ça. Como Tabelião-Geral, tinha a atribuição de lavrar do­cumentos (escrituras, certidões, testamentos) em qualquer parte do reino. Em 1418 foi nomeado Guarda-Mor da Tor­re do Tombo (em linguagem atual, Chefe do Arquivo Ge­ral do Estado). Em 1434 foi promovido por D. Duarte ao cargo de Cronista-Mor do Reino, encarregado de “poer en cronyca as estórias dos Reys que antyguamente en Portugal foran“, ou seja, encarregado de contar a história dos reis de Portugal. Exerceu esse cargo até 1454, quando foi substituído por Gomes Eanes de Zurara (ou Azurara). Pa­rece ter vivido até 1459 ou 1460.

Segundo o seu próprio testemunho e outros documen­tos, Fernão Lopes escreveu as crônicas de todos os reis de Portugal, a partir do conde D. Henrique, inclusive. Entre­tanto, muito do que escreveu ficou definitivamente per­dido ou foi apropriado e retocado pelos seus sucessores no cargo de Cronista-Mor. São de sua autoria três crônicas:

  • Crônica de El-Rei D. Pedro;
  • Crônica de El-Rei D. Fernando;
  • Crônica de El-Rei D. João I (primeira e segunda par­tes, compreendendo da Revolução de Avis até a expedição a Tânger).

A palavra crônica tem aqui sentido diverso daquele que hoje lhe atribuímos. Na Idade Média, crônica era o nome que se dava à narração dos feitos da nobreza, ou de acontecimentos, dispostos em ordem cronológica, confor­me a sequência linear do tempo. Na época dos Descobri­mentos, os relatos de navegadores e aventureiros denomi­navam-se crônicas de viagem e tinham função informati­va e histórica, noticiando e documentando a Expansão Ul­tramarina. Em sua significação moderna, crônica é um gênero literário definido e designa o texto curto, habi­tualmente publicado na imprensa, às vezes reunido em livro, e que explora, literariamente, por meio do lirismo e/ou do humor, um acontecimento diário, um fato extraí­do do cotidiano. Oscila entre o poema em prosa e o conto, e sua qualidade literária decorre do poder de recriação da realidade por meio da palavra.

Fernão Lopes — o historiador

Apelidado o Heródoto Português, por ter sido o “pai”, o fundador da historiografia portuguesa, Fernão Lopes dis­tingue-se de seus contemporâneos pela imparcialidade, pelo trabalho rigoroso de pesquisa e investigação dos fa­tos e documentos, levantados junto ao arquivo da Torre do Tombo, aos cartórios e registros paroquiais, sepulturas etc.

Nesse sentido, antecipa uma concepção moderna de His­tória, que visa ao relato objetivo e sem partidarismos. Antes de Fernão Lopes, os cronistas limitavam-se à idealização dos feitos da nobreza que os patrocinava, restringindo-se ao biografismo e às informações baseadas na tradição oral.

Como funcionário real, dentro do contexto do nascen­te absolutismo, a concepção de História em Fernão Lopes é regiocêntrica, isto é, está centralizada na figura dos reis e dividida em períodos correspondentes aos seus reinados. Contudo, a preocupação maior do historiador não é a exal­tação das virtudes do monarca, nem são os heróis indivi­dualizados. Fernão Lopes buscava uma visão de conjunto da sociedade portuguesa, valorizando as massas popula­res, concebendo o povo como co-agente das mudanças his­tóricas. Além dos fatos políticos, registra a importância dos fatores econômicos na vida dos protagonistas e na evolução dos fatos históricos. Observa, analisa, critica e documenta tanto as intrigas palacianas, quanto a dura vida dos trabalhadores nas aldeias e nas cidades, as festas popu­lares, a decadência da aristocracia, a Revolução de Avis. Sua simpatia pela Nova Geração, a Casa de Avis, não im­pede a crítica aos desmandos da monarquia, nem o faz per­der a noção dos limites humanos do poder real.

Seu espírito crítico, seu conhecimento dos autores da Antiguidade clássica e sua visão da importância do homem como agente da história revelam a aproximação com o es­pírito do Humanismo, que coube a ele introduzir em Por­tugal. Contemporâneo das primeiras conquistas ultrama­rinas, a morte impediu Fernão Lopes de ser o cronista dos primeiros triunfos marítimos lusitanos no Mar Tenebroso, o que caberia ao seu sucessor, Gomes Eanes de Zurara. Mas coube a Fernão Lopes ter sido o primeiro escritor que sentiu, em toda a sua profundidade e amplitude, o concei­to de Nação e o exprimiu em uma prosa vibrante, repleta de qualidades estilísticas, teatrais e poéticas, muitas vezes próxima da epopeia, e que foi a melhor literatura que se fez em seu tempo, em Portugal.

A pesquisa documental, o espírito crítico, a impar­cialidade, a visão de conjunto, o humanismo e o naciona­lismo resumem as principais qualidades de Fernão Lopes como historiador.

Fernão Lopes — o escritor

As crônicas de Fernão Lopes unem à excelência da concepção histórica a excelência da realização artística. Por isso, interessam também à Literatura.

Expressando-se em um estilo elegante, elaborado, mas sóbrio, sem maneirismos ou afetações, Fernão Lopes é tam­bém o primeiro prosador português de quem se pode di­zer que o estilo identifica o homem. As marcas dessa individualização revelam-se: na expressão vibrante e arrebata­dora, próxima da epopeia; na plasticidade das descrições, que permitem uma visualização palpitante das cenas; na capacidade de prender a atenção do leitor em um suspense contínuo, com ações simultâneas, cortes abruptos na nar­rativa, digressões; na habilidade dos diálogos que confe­rem dramaticidade às ações e revelam qualidades teatrais; na densidade dos retratos psicológicos das personagens que presentificam na imaginação do leitor os vultos históricos do passado; na combinação de feitos individuais e de mo­vimentos de massa na mesma unidade de ação, fazendo convergir acontecimentos múltiplos para um desfecho; no ardor polêmico em que se alternam o tom colérico, indig­nado e o tom irônico, depreciativo; tudo isso revestido de uma linguagem sóbria, cuidada, às vezes próxima do coloquial.

Os sucessores de Fernão Lopes

Gomes Eanes de Zurara sucedeu a Fernão Lopes, em 1454, no cargo de Cronista-Mor do Reino e pretendeu dar sequência ao projeto de escrever a história de todos os reis portugueses até aquela data. Para tanto, acrescentou à obra de seu predecessor a terceira parte da Crônica de D. João I, também chamada de Crônica da Tomada de Ceu­ta, seu trabalho mais importante e o único que se apro­xima de algumas das qualidades de Fernão Lopes. Histo­riou também a Conquista da Guiné e a vida do Infante D. Henrique, mais voltado para a exaltação dos feitos indi­viduais e para a louvação da nobreza, do que para a visão crítica, afastando-se de Fernão Lopes por preferir a tradi­ção oral à pesquisa documental. Iniciador da historiogra­fia da expansão ultramarina, com a narrativa da Tomada de Ceuta (1415), inaugura uma linha ufanista, comum a toda a literatura de informação quinhentista e que ecoa até em Os Lusíadas. Preocupado com individualidades e não com grupos sociais, orientado por uma visão cavalheires­ca da história e literariamente menos dotado que Fernão Lopes, teve ainda a prejudicá-lo o fato de relatar aconte­cimentos mais ou menos contemporâneos, socorrendo-se principalmente de testemunhos orais. O gosto pelas citações eruditas e a sintaxe latinizante, às vezes rebuscada e artifi-ciosa, revelam a influência da cultura clássica, nem sem­pre bem assimilada.

Rui de Pina foi o quarto Cronista-Mor (o terceiro, Vasco Fernandes de Lucena, nada escreveu em matéria historio-gráfica, apesar de ocupar o cargo por quase trinta anos). De sua autoria exclusiva são a Crônica de D. Afonso V e a Crônica de D. João II, já que suas primeiras obras seriam a refundição do trabalho de outros cronistas, ou estariam calcadas nas crônicas perdidas de Fernão Lopes ou em escritos inacabados de Zurara. Sua obra mais pessoal, ba­seada no conhecimento direto dos fatos e em documentos oficiais, é a Crônica de D. João II, o “Príncipe Perfeito“, dentro da versão oficial dos fatos que esse rei quis impor aos seus contemporâneos. Limitando-se à realeza e à vida da corte, valeu-se de um estilo “burocrático”, de escrivão oficial, às vezes entremeado de algumas páginas comovi­das e literariamente interessantes.

A prosa historiográfica portuguesa continuou a se de­senvolver já fora dos limites da Idade Média e do Huma­nismo. João de Barros, Fernão Lopes de Castanheda e Damião Góis, no século XVI, serão os grandes historia­dores da expansão marítima e das conquistas portuguesas.

Texto – Crônica de El-Rei D. Pedro

No fragmento que transcrevemos a seguir, Fernão Lopes narra a vingança do Rei D. Pedro I (de Portugal) contra dois dos responsáveis pela condenação de Inês de Castro à morte. Caracteriza psicologicamente o monarca como frio e sanguinário e narra o suplício a que submeteu Álvaro Gonçalves e Pero Coelho. Após torturá-los para que denunciassem os outros implicados na morte de sua amante, mandou que os matassem, fazendo arrancar o co­ração de ambos; do primeiro, pelas costas, do segundo, pelo peito. E enquanto assistia ao suplício de suas vítimas, saboreava um coelho temperado com cebola e vinagre. No parágrafo final, o cronista faz uma digressão histórica, condenando o desrespeito ao direito de asilo político que Portugal e Castela normalmente reconheciam em relação aos refugiados ou perseguidos por razões políticas.

Trans­crevemos em português moderno:

A Portugal foram trazidos Álvaro Gonçalves e Pero Coelho. Chegaram a Santarém onde estava el-rei D. Pedro, e este com prazer de sua vinda, embora irritado porque Diego Lopes (1) fugira, saiu fora (2) a recebê-los. E sa-nha (3) cruel sem piedade lhes fez pela sua mão meter a tormento, querendo que lhe confessassem quem e que participara na morte de D. Inês, e que é que o seu pai (4) tratava contra ele quando andavam desavindos por causa da morte dela. Nenhum deles respondeu a tais perguntas cousa que agradasse a el-rei, e dizem que ele ressentido deu um açoite no rosto a Pero Coelho. Este soltou-se en­tão em desonestas e feias palavras contra el-rei, chaman-do-lhe traidor, perjuro, algoz e carniceiro dos homens. El-rei, dizendo que lhe trouxessem cebola e vinagre para o coelho, enfadou-se deles e mandou-os matar.

A maneira da morte deles dita pelo miúdo (5) seria muito estranha e crua de contar, porque a Pero Coelho man­dou arrancar o coração pelo peito, e a Álvaro Gonçalves, pelas espáduas. E tudo o que se passou seria cousa dolo­rosa de ouvir. Finalmente el-rei mandou-os queimar. E tu­do feito diante dos paços em que ele estava, de maneira que, enquanto comia, olhava o que mandava fazer.

Muito perdeu el-rei de sua boa fama por tal troca (6) como esta, a qual foi tida em Portugal e em Castela por muito grande mal, dizendo todos os bons que a ouviam, que os reis erraram muito, faltando à sua verdade, visto que estes cavaleiros estavam açoitados (7) em seus reinos com garantia.

(As Crônicas de Fernão Lopes, selecionadas e transpostas em português moderno. Antônio José Saraiva, Lisboa, Gradiva, 3- edição, 1993, p. 52)

Notas:

(1) Diego Lopes: terceiro implicado na morte de Inês de Castro, con­seguiu escapar da vingança do rei de Portugal, pois não foi locali­zado quando foram prendê-lo.
(2) saiu fora: pleonasmo que visa a enfatizar a ansiedade com que o rei D. Pedro esperava pelos prisioneiros.
(3) sanha: ódio, grande ira.
(4) seu pai: D. Afonso IV, pai de D. Pedro, conivente na morte de Inês de Castro.
(5) dita pelo miúdo: contada minuciosamente, com detalhes.
(6) tal troca: o cronista refere-se à permuta que fizeram os reis de Por­tugal e Castela. Em troca de Pero Coelho e Álvaro Gonçalves, D. Pedro entregou ao rei de Castela alguns de seus inimigos, que esta­vam “exilados” em Portugal.
(7) açoitados: abrigados, homiziados, escondidos.

Por: Renan Bardine

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