Literatura

Prosa Medieval

A prosa na Idade Média dos séculos XII a XIV era toda anônima, feita em geral sob encomenda de nobres ou de religiosos. Não tinha intenções artísticas, mas destinava-se à diversão ou tinha como finalidade um registro documental ou místico.

As canções de gesta e as novelas de cavalaria

Em todas as literaturas, a forma poética precede a pro­dução literária em prosa. Com exceção das nacionalidades resultantes da colonização europeia a partir do século XVI, a poesia surge mais cedo do que a prosa literária. Isso se deve a que, nas civilizações do passado, a mais corrente forma de comunicação e de transmissão da obra literária não é escrita, mas sim oral. Antes de se fixarem na pedra, no bronze, no papiro, no pergaminho ou no papel, as his­tórias, as narrativas e até os códigos morais e jurídicos gra­vavam-se na memória dos ouvintes e eram transmitidos oralmente. Havia artistas que se encarregavam de divulgar essa cultura oral: entre os gregos, eram os aedos e rapsodos; entre os celtas, os bardos; entre os povos românicos medievais, os jograis. Vestígios dessa literatura oral são ainda hoje os provérbios que obedecem a ritmos ou recor­rências sônicas (repetições de frases, palavras e sons, por meio de recursos como os refrãos e as rimas), que visam a facilitar a compreensão e a memorização.

Ainda nessa fase pré-literária surgem as canções de gesta, composições em verso que exaltavam o espírito guer­reiro, os heróis e lendas do norte da França e da Inglaterra, oralizadas pelos bardos bretões. Essas narrativas, assimiladas pelos jograis peninsulares e difundidas por eles, refle­tiam a natureza belicosa e rústica da Cavalaria, organiza­ção paramilitar destinada à defesa do mundo cristão e ao fortalecimento do poder senhorial. O cavaleiro armado e o castelo fortificado eram, nos séculos IX e X, depois do es­facelamento do Império de Carlos Magno, os únicos ba­luartes da Europa ocidental contra as invasões de sarracenos, eslavos e outros povos bárbaros.

As primitivas canções de gesta refletiam a rudeza e a violência dessa época sombria e modelaram uma infi­nidade de heróis guerreiros. Com a estabilização da Euro­pa cristã, essas narrativas vão se alargando, incorporando outras personagens, cristalizando-se em lendas que trans­cendiam qualquer aspecto individual. Deixam de ser ex­pressas em versos para o serem em prosa, deixam de ser cantadas para serem lidas. Em prosa, as canções de gesta transformam-se nas novelas de cavalaria.

Paralelamente, a Igreja Católica decide, no Concilio de Clermont, 1095, a organização da Primeira Cruzada, institucionalizando a cavalaria cristã. Os cavaleiros andantes feudais, que muitas vezes haviam se transformado em bandoleiros ou desocupados, são reconvertidos e tornam-se agentes da fé, heróis inquebrantáveis na defesa dos fracos e oprimidos, estoicos, altruístas, a serviço não mais do senhor feudal, mas da salvação sobrenatural. Essa aura de misticismo que envolve esses santos-guerreiros não impe­de, contudo, a presença ocasional do lirismo e do erotismo em cenas de grande tensão, nas quais se contrapõem o de­sejo carnal, forte e realista, e a fortaleza moral, a castidade dos cavaleiros submetida a provas duríssimas.

Também o ideal amoroso trovadoresco acabou por ser assimilado pela religião. O “serviço” amoroso do cavalei­ro por uma mulher de carne e osso acaba se transformando em um “serviço” a uma mulher desmaterializada, muitas vezes identificada com a Virgem Maria. Todas as virtudes do cavaleiro (força, coragem, altruísmo etc.) não são mais postas a serviço do amor carnal, mas do ideal religioso.

A prosa religiosa, moralizante e a historiografia

Já explicamos que, em seus momentos iniciais, a poe­sia foi muito superior à prosa. Os mais antigos textos em prosa redigidos em português não são literários. São docu­mentos tabeliônicos, cartoriais, como A Notícia do Torto, de 1211(?), e o Testamento de D. Afonso II, de 1214.

O aperfeiçoamento da língua sofre notável incremen­to quando D. Dinis determina a substituição do latim bár­baro pelo idioma nacional (“a português linguagem”, como se dizia) nos documentos oficiais do Reino e promove a tra­dução de obras jurídicas e históricas, como:

• A Lei das Sete Partilhas, de D. Afonso X.

• A Crônica Geral de Espanha, realizada por escribas supervisionados por D. Afonso X, a partir de materiais di­versos, recolhidos em autores latinos, clássicos, medievais, em historiadores e geógrafos árabes e em cantares de ges­ta, constituindo uma ampla história peninsular. Além da codificação medieval de leis e de historiografia, vale lembrar que a corte de D. Afonso X, o Sábio, produziu grande, parte da poesia lírica, satírica e religiosa em língua galego-portuguesa.

A – As traduções de Alcobaça

Paralelamente a esse trabalho, desenvolve-se a ativida­de dos monges, em especial, de Santa Maria de Alcobaça, de Santa Cruz de Coimbra, do Lorvão e de São Vicente, na tradução de obras de feição edificante e de formação moral: A Regra de São Bento, Os Atos dos Apóstolos, as hagiografias (vidas de santos), O Castelo Perigoso, Bosco Deleitoso, A Corte Imperial e Orto do Esposo (no qual Eça de Queirós encontrou assunto para o conto “O Tesouro”).

B – Os cronicões – A gesta de D. Afonso Henriques

Constituíam-se de registros históricos, de natureza não-religiosa, com tendências para o heroísmo e para o sobre­natural. Cabem ao Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra as mais significativas produções de índole histórica: Crônicas Breves e Memórias Avulsas, Crônica Breve do Arquivo Na­cional, Crônica da Conquista do Argárve e a Crônica da Fundação do Mosteiro de São Vicente de Lisboa.

Nesta última, a figura do primeiro rei de Portugal, D. Afonso Henriques, é retratada, dentro do espírito eclesiás­tico, como um homem piedoso, temente a Deus, mas sanguinariamente antimuçulmano, sem o relevo humano, épi­co e lendário que o transformarão em um herói próximo do El Cid, o Campeador. É o que começa a ocorrer a partir da Crônica Geral, de 1344. D. Afonso Henriques, Egas Moniz e outros surgem cristalizados como heróis lendá­rios, constituindo uma gesta afonsina, ordenada por uma trama de conjunto que lhe dá unidade trágica:

  • as lutas de Afonso Henriques contra a mãe e o padrasto pela posse da herança do conde D. Henrique e a maldi­ção de D. Teresa, encarcerada pelo próprio filho, maldi­ção esta que se concretiza no desastre que inutilizou Afonso Henriques pelo resto de sua vida;
  • as lutas de Afonso Henriques contra o papa, na defesa do poder real;
  • as lutas de Afonso Henriques pela independência do Con­dado Portucalense, contra Afonso VI, de Leão e Castela;
  • o assalto e a tomada de Santarém;
  • o desastre de Afonso Henriques, em luta contra Fernando de Leão e Castela, no assalto de Badajós.

A gesta de Afonso Henriques revela a existência de um sentimento nacional a definir-se. É a gesta da indepen­dência, primeira expressão de um sentimento épico ligado ao “amor à terra”. O ciclo lendário do primeiro rei de Portu­gal pretende defender a sua causa contra sua mãe, D. Teresa, apontando o filho como legítimo herdeiro do território dei­xado pelo pai; também dá razão a Afonso Henriques no con­flito com a Santa Sé. É a gesta de um cavaleiro bárbaro, bravio e feroz, capaz de algemar a mãe e erguer a espada para cortar a cabeça de um legado papal.

C – Os nobiliários ou livros de linhagem

São registros de famílias nobres que tinham em vista: acautelar os direitos patrimoniais da aristocracia (os de “padroado” e de “avoenga”); impedir alianças matrimoniais en­tre parentes até o sexto grau, vedadas pelo direito canônico, e ainda exaltar os feitos da nobreza, contribuindo para o prestígio e a unidade da classe aristocrática.

Dos quatro existentes, destacam-se os dois últimos, organizados por D. Pedro, Conde de Barcelos, filho de D. Dinis. A Lenda de Gaia ou do Rei Ramiro e contos como os do “Rei Leir”, da “Dama Pé de Cabra” e da “Dama Marinha” encontram em Portugal uma das inúmeras variantes que a tradição oral europeia perpetuou, por exemplo, na tragédia do Rei Lear, de Shakespeare, e em várias das Lendas e Narrativas, de Alexandre Herculano. A narração da Batalha de Salado é o texto literariamente mais notável do século XIV, na linha que servirá, no século seguinte, à prosa madura de Fernão Lopes.

Por: Renan Bardine

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