Química Nuclear

Programas Nucleares

Dez anos depois do desastre de Chernobyl, vários países fecharam os reatores. Mas há programas nucleares bem administrados e viáveis. Afinal, o que fazer com a energia atômica daqui por diante?

Entre Pripiat, na Ucrânia, e Paris, há 1 999 quilômetros e um abismo mental. O vulto da usina de Chernobyl domina o horizonte de Pripiat, onde não restou um habitante. Lá, energia nuclear é sinônimo de morte. Depois da explosão do reator número 4, na madrugada fatídica de 26 de abril de 1986, a radiação varreu tudo. A cidade foi abandonada e a roda do parque de diversões que seria inaugurada na festa de 1° de maio nunca girou. O acidente inutilizou uma área equivalente a um Portugal e meio, 140 000 quilômetros quadrados. Por centenas de anos.

A Europa despertou como se estivesse em um pesadelo. Itália, Alemanha, Suécia, Finlândia, Suíça, Holanda e Espanha deram marcha a ré nos programas nucleares e fecharam usinas. Para eles, o risco de um acidente igual era insuportável. Mas há usinas precárias nos antigos países socialistas que ainda ameaçam toda a vizinhança europeia.

A solução, então, é fechar tudo? Se depender do Canadá, do Japão ou da França, onde reator nuclear é sinônimo de progresso, a resposta é não. Os franceses passam muito bem e 75% da energia no país vêm do átomo. Exportam usinas, reprocessam urânio, armazenam lixo radioativo e têm dois reatores de última geração. Tudo com aprovação das pesquisas de opinião pública. “Virar as costas para o átomo é burrice”, diz Jean Paul Chaussade, diretor de comunicação científica da Electricité de France (EDF). “O petróleo e o gás vão se esgotar em quarenta anos. Os combustíveis fósseis poluem mais e o impacto ambiental das hidroelétricas é muito maior. A alternativa atômica é cada vez mais barata e segura”. Hoje, entre Pripiat e Paris, o futuro balança. Abaixo, você vai saber por quê.

O sucesso da virada à francesa

No caso de funcionamento inadequado, a ordem é fechar tudo. Faz parte dessa política manter a população informada sem esconder nada, ao contrário do que fazem os países do leste europeu até hoje. Na verdade, a França é movida pelo átomo. Os reatores são instalados perto dos consumidores, diminuem os custos de transmissão e eliminam a dependência de recursos naturais. Sim, são perigosos. Mas geram menos lixo e menos poluição do que termoelétricas a carvão. Além disso, o quilowatt nuclear custa 2,5 vezes menos que o quilowatt do cata-vento e doze vezes menos do que o quilowatt solar.

A EDF reutiliza o urânio dos reatores e reprocessa o dos países que não dominam essa tecnologia. Também está na ponta com a operação de dois fast-breeders, o Phenix e o Super-Phenix, reatores de neutrons rápidos que, ao contrário dos comuns, reaproveitam boa parte do plutônio que utilizam. Com tudo isso, o preço da energia nuclear despencou (veja gráfico abaixo). E há muita oferta de urânio a preço baixo no mercado.

A França produziu 55 toneladas de lixo radioativo em 1996. Quase 1 quilo por cidadão. É muito? “Depende”, diz Chaussade. “Há seis anos produzíamos 100 toneladas por ano”. Há dois centros de armazenamento, em La Hague, no norte do país, e Aube, no centro-leste. O primeiro já está lotado. Aube deverá servir mais vinte anos.

O lixo é tratado segundo a radioatividade. Em cada quilo, 950 gramas têm fraca intensidade (esgota-se em 30 anos), 45 gramas têm média intensidade (o metal contaminado das cúpulas dos reatores é perigoso durante centenas de anos) e 5 gramas têm alta radioatividade (dura centenas de milhares de anos). Os de fraca intensidade são estocados em barris e mergulhados em concreto. Os de média e alta passam por um tratamento químico que separa aço, urânio e plutônio e, depois, são vitrificados em tubos revestidos de concreto ou betume. Então, são armazenados a 600 metros de profundidade.

O programa nuclear francês conquistou tanta autonomia que, durante anos, pôde ignorar protestos contra as explosões nucleares submarinas conduzidas pelos militares no Atol de Mururoa, no Oceano Pacífico. Foram 181 testes, em trinta anos. Só foram suspensos em janeiro de 1996, sob a pressão de uma das maiores vaias mundiais que a França já sofreu.

Uma opção para quem não tem outras saídas – Japão

O Japão não tem carvão, petróleo nem rios. Também não tem espaço suficiente para instalar grandes painéis fotovoltaicos e captar energia solar em larga escala. Por isso, há vinte anos a produção de quilowatt atômico vem aumentando. Em 1973, representava 0,6% de toda a eletricidade produzida no país. Em 1996, saltou para 30%. Trata-se, já, do terceiro maior parque nuclear do mundo: 51 reatores em operação. Sem maiores problemas. A opção é preciosa para os países com poucas opções energéticas, que teriam de importar carvão ou petróleo.

Os japoneses reprocessam urânio na usina de Tokai e também na Europa, em centrais da Inglaterra e da França. O tráfego de navios carregados de material radioativo é alvo de protestos constantes dos ecologistas do Greenpeace. Também fazem pesquisa de ponta com fast-breeders, operando com sucesso o reator de Monju. Mas não resolveram a questão do lixo. Por enquanto, guardam os dejetos em locais provisórios à espera de uma definição posterior do que fazer com eles.

O risco de um novo Chernobyl – Leste Europeu

Ignalina na Lituânia, Kozloduy na Bulgária, Medzamor na Armênia, Sosnovy Bor na Rússia. No leste europeu há várias usinas candidatas à catástrofe. A começar pela própria Chernobyl que, além do reator destruído, que virou um túmulo de concreto, mantém outros três em funcionamento. Só nos últimos dois anos, houve três incidentes em Chernobyl. E, como no tempo da guerra fria, as autoridades ucranianas demoraram meses para notificar a AIEA, a Agência Internacional de Energia Atômica.

“Com o desaparecimento da União Soviética”, diz Hans-Friedrich Meyer, da IAEA, “a situação no leste europeu, que já era ruim, ficou pior: a manutenção e o controle se deterioraram e os defeitos continuam lá.” Mas a maior complicacão é que os países do antigo bloco socialista dependem mesmo dessas geringonças. Ignalina, por exemplo, fornece 80% da eletricidade da Lituânia.

Em números exatos, o leste da Europa tem 58 problemas. Ou melhor, 58 reatores, de dois tipos: o VVER e o RBMK. No primeiro, faltam controles duplos. Se os controles principais pifam, não há reservas. Outra debilidade é a cúpula de aço, que é vulnerável à variação brusca da temperatura da água usada para refrigerá-la. No segundo, o calcanhar de Aquiles são os 33 quilômetros de 1700 tubos que carregam combustível dentro dele e são vulneráveis ao bombardeio con-tínuo da radiação de nêutrons. Mal controladas, suas soldas podem se romper. Além disso, diz Chaussade, da EDF, “a mistura entre vapor nuclear e água, no coração do reator, é malfeita e tende a multiplicar a potência das reações. O que se torna grave pela falta de uma instalação de confinamento que as contenha”.

Saldo controverso – Chernobyl

Foi isso o que aconteceu em Chernobyl. Ao ser detectado o mal funcionamento, a máquina foi desligada, mas a anomalia fez com que, em dez segundos, a potência da central fosse multiplicada cem vezes, provocando a explosão. Em contato com o ar, o urânio pegou fogo. Toneladas de partículas ­ 140 exatamente ­ foram liberadas no ambiente. Uma nuvem sinistra de radioatividade atravessou a Europa.

Até hoje, o saldo é controverso. A Greenpeace fala em 60 000 mortos a longo prazo. O Instituto de Radiologia de Kiev admite 31 mortos e 50 000 contaminados. Um estudo da Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico indica que a incidência de câncer na tiroide na área de Chernobyl aumentou mais de cem vezes. Por tudo isso, como diz Chassaude, “o ideal seria parar os VVER de primeira geração e todos os RBMK”.

Países como a Eslováquia  melhoraram a segurança das centrais. Mas outros, como a Bulgária e a Ucrânia, por incrível que pareça, barganham para conseguir mais recursos financeiros ­ uma espécie de chantagem com o próprio risco. Em abril de 1996, a Ucrânia recebeu dos sete países mais desenvolvidos do mundo uma proposta de 2,3 bilhões de dólares para fechar os reatores ativos de Chernobyl. Alegou que teria de compensar a perda importando eletricidade e pediu 5 bilhões de dólares. Não houve negócio. Será difícil esquecer Chernobyl

Programas Nucleares no Mundo

Há 442 reatores funcionando em 36 países.

Estados Unidos: Têm 109 reatores funcionando. Desde o acidente de Three Miles Island, em 1979, a expansão nuclear foi congelada. Têm três depósitos lotados de lixo radioativo. A Califórnia rejeitou um projeto federal para estocar dejetos.

França: Têm 56 reatores gerando 75% da eletricidade nacional. Está na ponta no tratamento do lixo atômico. Lidera o ranking dos exportadores.

Canadá: Maior exportador de urânio do mundo. Desenvolveu uma tecnologia avançada de reatores. Tem 21 usinas produzindo 19% da eletricidade do país.

Grã-Bretanha: Tem 35 reatores gerando 25% de sua eletricidade. Reprocessa e armazena dejetos vitrificados. Tem grandes reservas de petróleo, gás e carvão.

Itália: Fez um plebiscito e fechou seus quatro reatores.

Suécia: Quer fechar suas doze usinas até 2010.

Alemanha: Endureceu as regras de segurança e fechou todas os reatores da antiga Alemanha Oriental

Rússia: Tem as piores usinas do mundo. Os problemas de manutenção são crônicos. Há tráfico ilegal de urânio e de materiais radioativos.

Japão: Têm 51 reatores gerando 30% da eletricidade. Reprocessa combustível na França e na Inglaterra.

China: Têm três reatores. É o maior importador de tecnologia nuclear. Comprou um pacote de dez reatores franceses por 25 bilhões de dólares.

Nuclear, não obrigado – Europa

Sete países europeus fecharam reatores e cancelaram os programas nucleares.

Em novembro de 1987, sob impacto da explosão de Chernobyl, os italianos foram às urnas para um plebiscito. Votaram não à energia nuclear. Meses depois, foi fechada a usina de Latina. As obras dos reatores de Caorso, Trino e Montalto di Castro também foram paralisadas. O último acabou virando uma termoelétrica a gás natural.

Os italianos não foram os únicos. Depois de Chernobyl, Alemanha, Suíça, Suécia, Finlândia, Bélgica, Holanda e Espanha decidiram pelo mesmo não. Boa parte da opinião pública da europa ocidental não está disposta a correr o risco.

Na Suécia, o parlamento votou uma lei prometendo fechar as doze usinas do país até 2010. Mas deputados e ecologistas enfrentam a oposição poderosa de sindicalistas e empresários. O argumento é que parar reatores e buscar alternativas energéticas custa de 20% a 30% a mais do que mantê-los funcionando. Para economizar o equivalente, teriam que ser cortados empregos. Daí a antipatia da indústria pelas causas ecológicas.

Na Alemanha, a solução foi híbrida. Apesar de não haver decisão oficial proibindo novas instalações ­ e de vinte reatores continuarem operando ­, nenhum outro foi construído desde Chernobyl. Os alemães endureceram as regras de segurança e fecharam todas as nove usinas da antiga Alemanha Oriental. Em compensação, ficaram mais dependentes do carvão, que exige um alto subsídio do governo. O emprego de milhares de mineiros é mantido, mas a poluição gerada anula a vantagem ecológica do abandono do átomo.

O vaga-lume atômico – Brasil

O programa nuclear brasileiro sobrevive graças a um paradoxo: gastou demais para ser desativado.

Em novembro de 1976, o Brasil assinou um acordo na Alemanha com a empresa KWU, do grupo Siemens, para a construção de oito reatores nucleares. Em vinte anos, nenhum ficou pronto. A usina Angra 2, em Angra dos Reis (RJ), consumiu 5,8 bilhões de dólares e requer mais 1,2 bilhão para ser concluída. As obras foram retomadas em março passado e deverão acabar, diz-se, em 1999. No total, serão 7 bilhões de dólares por um reator de 1 300 megawatts que pode ser adquirido pronto, hoje, por 1,5 bilhão de dólares. Na praia de Itaorna, ao lado de Angra 2, jaz, quase sempre desligado, o reator de Angra 1, anterior ao acordo com a Alemanha. É um PWR-Westinghouse, uma espécie de Fusca 1967, comprado nos Estados Unidos naquele ano. Seu apelido é vaga-lume. Quando está ligado, gera 650 megawatts. Mas como o nome indica, vive piscando. Mais apagado que aceso. Tem um dos mais baixos índices de eficiência do mundo.

Coleção de erros

O programa nuclear brasileiro coleciona atrasos, multas, juros e erros como as fundações mal calculadas de Itaorna ­ que, afinal, quer dizer “pedra mole” em Tupi. “Angra 2 é um desses casos além do ponto de não-retorno”, diz o ex-ministro do Meio Ambiente, José Goldemberg. “Desistir significa assumir um prejuízo maior do que o necessário para concluir”. Essa também é a opinião de Luiz Pinguelli Rosa, diretor da Coordenação de Programas de Pós-Graduação em Engenharia (Coppe), da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ): “Apesar do desperdício monstruoso de dinheiro, concluir Angra 2 tem alguma racionalidade.”

Mas, se serve para Angra 2, o raciocíno não serve para Angra 3 que a Eletrobrás também pretende construir em Itaorna, sob o argumento de que 40% dos equipamentos já foram comprados. “Eles que vendam tudo para o Irã ou a Índia”, aconselha Goldemberg. “Angra 3 é um absurdo”, concorda Pinguelli. “Não tem justificativa energética. São os alemães que estão pressionando o Brasil para comprar a mercadoria.”

Nesses vinte anos de más experiências, a maior conquista foi feita pelo Centro Experimental de Aramar, da Marinha, em Iperó (SP), que desenvolveu um método próprio de enriquecimento de urânio em ultracentrífugas. Com isso, garantiu o abastecimento dos reatores e livrou o país do método alemão de enriquecimento por jet nozzle, que, na verdade, nunca funcionou. Em 1990, o Brasil dispunha de 10 562 profissionais na área nuclear. Hoje tem 8 275. “Reina desânimo e desmotivação”, diz o professor de Energia Nuclear José Carlos Borges, da UFRJ. Questões tecnológicas importantes, como a do lixo radioativo, permanecem abertas. Até o direito básico da população de Angra à segurança está mal resolvido ­ ou pelo menos mal explicado. Para os críticos, o Plano de Evacuação da cidade em caso de acidente é uma ficção. Tem tudo para dar errado.

A casa dos horrores nucleares – Bomba Atômica

O arsenal mais terrível do mundo tem seu lugar para a posteridade – se é que haverá alguma.

Um museu americano guarda uma completa coleção de bombas atômicas e mísseis para turista ver.

Na manhã de 6 de agosto de 1945, quase ao fim da Segunda Guerra Mundial, o bombardeiro B-29 americano Enola Gay lançou a ainda não testada bomba de urânio Little Boy sobre a cidade de Hiroxima, a sudoeste de Honshu, a principal ilha japonesa. Ela rebentou no ar a 600 metros de altura e liberou uma energia equivalente a 20 quilotons (20 mil toneladas) do explosivo químico TNT, matando 64 mil pessoas instantaneamente. Três dias depois, após sobrevoar inutilmente durante 45 minutos um segundo alvo, a cidade de Kokura, sem visualizá-la, o avião mudou de rumo. E Fat Man, outra bomba, esta de plutônio, arrasou mais da metade da área de Nagasaki, no sul do Japão. Passados seis meses, 40 mil pessoas haviam morrido. O número de vítimas poderia ter sido ainda maior e incluir cidadãos americanos caso o mau tempo não tivesse afastado o bombardeiro 1500 metros do alvo: isso salvou a vida de 1300 prisioneiros de um campo de concentração japonês desconhecido dos Estados Unidos.

A devastação causada por essas bombas acabou de vez com a guerra, provocou espanto e horror no mundo inteiro, mas não impediu o desenvolvimento das armas atômicas – muito ao contrário. Elas instituíram o chamado “equilíbrio do terror”, sustentado pelas mais de 25 mil ogivas nucleares das duas superpotências, Estados Unidos e União Soviética, capazes de exterminarem  múltiplas vezes a vida na Terra. O potencial das bombas de fusão, ou termo nucleares, é da ordem de 60 megatons (60 milhões de toneladas de TNT). É como se cada ser humano se tivesse tornado um refém da paz armada. É inegável também que o arsenal nuclear exerce uma atração algo mórbida sobre muita gente. E um lugar onde isso pode ser percebido claramente é o Museu Atômico Nacional, que funciona na cidade de Albuquerque, no estado americano do Novo México. “As pessoas se alegram de conhecer a tecnologia das armas atômicas”, comenta Joni Hezlep, o diretor do Museu.

“Grátis! Educativo! Fascinante!”, proclama o folheto distribuído aos quase 150 mil turistas que todo ano percorrem o ambiente escuro do velho hangar de helicópteros, hipnotizados pela visão de 68 armas nucleares iluminadas, imagens de cogumelos atômicos e pôsteres com a história das bombas. Sentado ao lado de uma Mark-17, a primeira bomba termonuclear desenhada para ser lançada de avião, o turista aperta um botão e logo aparece na tela de TV um filme das primeiras provas realizadas com ela. Esta versão moderna de “casa dos horrores” reúne sobras de guerra e material de treinamento.

O orçamento do Museu é suficiente para a permanente renovação do acervo. Exemplares de safras recentes da indústria bélica repousam, ainda encaixotados, atrás do hangar, entre a sucata de um jato supersônico F-105, peças de foguetes e uma coleção de mísseis,. Segundo o historiador do Museu, Richard L. Ray, a intenção não é chocar e sim conservar e exibir os equipamentos como parte da História. “Todo mundo sabe o que faz uma bomba desta. Não precisamos mostrar corpos carbonizados”, justifica. Ele conta que dois sobreviventes de Hiroxima e Nagasaqui visitaram o Museu o acharam um boa ideia, apesar de não ter fotos que lembrem o martírio japonês. Ao observar as réplicas de Fat Man e Little Boy, lembra o historiador, os dois caíram de joelhos a chorar.

A maioria das armas expostas tem nomes muito atrativos: Lulu (bomba de explosão em profundidade submarina). Walleye (bomba de planagem), Honest John (míssil terra-ar) e David Crockett, SUBROC e ASROC (foguetes de lançamento submarino e antissubmarino). Os arsenais nucleares encontram-se divididos em três categorias: os mísseis balísticos intercontinentais (ICBMs), lançados de terra; os mísseis lançados de submarinos (SLBMs), de menor porte e precisão; e os bombardeiros estratégicos. Para o observador atento, as armas mais antigas traem suas origens. É que muito da evolução ocorrida até se chegar aos mísseis modernos derivou das pesquisas desenvolvidas durante a guerra, há quase meio século, pela Alemanha nazista.

De fato, no dia 8 de setembro de 1944, cinco minutos depois de ser disparada de Haia, a capital da Holanda, então sob domínio alemão, a uma velocidade de 5 mil quilômetros por hora, caía em Londres o primeiro foguete nazista, batizado de V-2. Estava inaugurada a era das armas automáticas de longo alcance. Com a vitória dos aliados em 1945, mais de cem especialistas alemães, a começar pelo físico Wernher von Braun, foram acolhidos nos Estados Unidos (os russos também carregaram tantos quanto puderam).    Além do pessoal, os americanos tomaram setenta dos mais avançados foguetes alemães para testes de treinamento. União Soviética, França e Inglaterra trataram igualmente de obter informações sobre foguetes e mísseis. A história dos testes nucleares também faz parte do roteiro do Museu Nacional. Toda semana, caravanas de turistas percorrem 200 quilômetros no escaldante deserto do Novo México até a Base Aérea de Alamogordo, para conhecer ao local da primeira explosão atômica do Mundo.

Mais de mil pessoas se aglomeram na cratera aberta pela bomba, enquanto os alto-falantes repetem sem parar a gravação da contagem regressiva original e o som autêntico da explosão. Em um reboque próximo, outra réplica de Fat Man mais parece a caricatura de uma bomba que o potente patriarca de uma família já excessivamente prolífera. Nesse desolado lugar, às 5h30 do dia 16 de julho de 1945, o Fat Man original explodiu no alto de uma torre de aço de 30 metros de altura.

Os cientistas acompanharam a explosão em abrigos subterrâneos a quase 100 quilômetros de distância. Primeiro foi uma luz intensa iluminando montanhas a 16 quilômetros, depois uma súbita onda de calor e um grande estrondo, assim que as ondas de choque ecoaram no vale. Uma bola de fogo surgiu rapidamente, seguida do cogumelo de 12 mil metros que iria tornar-se a imagem mais ameaçadora do século. A bomba havia gerado uma força explosiva equivalente a 20 mil toneladas de TNT. Rodeando o local da torre há uma cratera de mais de 300 metros de diâmetro por 3 de profundidade. A intensa pressão e o calor gerado pela fissão dos átomos fundiram a areia a ponto de convertê-la em uma matéria sólida, cristalina, de cor verde-jade. Essas pedras verdes se chamam trinitita, devido ao nome em código do projeto de teste – Trinity.

Sob o intenso sol do deserto, os turistas passeiam agachados, buscando trinitita. Aparentemente, não leram por inteiro o folheto que adverte: “Já que este material ainda retém um pequeno nível de radiação, que pode representar risco se suas partículas de pó forem inaladas ou ingeridas, pede-se não recolher pedras ou escavar o solo”. Todo o lugar ainda é ligeiramente radioativo. O programa informa que “as crianças pequenas e as mulheres grávidas correm maior risco potencial” e avisa as pessoas que não comam, bebam, fumem ou levem animais domésticos ali. Enquanto se ouve um discurso ao ar livre de Robert Krohn, um dos cientistas que testemunharam a explosão, não é incomum ver sacerdotes de seitas místicas, seguidos de grupos vestidos de branco, gritando para exorcizar a “semente da destruição”. As poucas sementes que germinaram ali, mais de quarenta anos depois do teste, mostram na verdade que o terreno volta a dar sinal de vida, não de destruição.

Carregando o seu souvenir radioativo, o turista da era atômica prossegue seu passeio, seguindo ao norte de Albuquerque até Los Alamos, o lugar onde a bomba foi efetivamente concebida. Ali funciona o Museu Científico Bradbury, a outra face do Museu Atômico Nacional. As salas bem iluminadas estão cheias de recordações dos primeiros dias da energia nuclear e, se se esquecer Hiroxima, o equilíbrio do terror e o acidente de Chernobyl, fica até fácil admirar essa grande conquista científica. De fato, o controle do poder do átomo representa um dos maiores resultados da atividade humana organizada. Em menos de cinco anos, cientistas de diferentes nacionalidades, trabalhando em várias frentes de pesquisa, transformaram a teoria em realidade. Foi o físico italiano Enrico Fermi (1901 – 1954) quem iniciou as primeiras experiências. Ele realizou uma série de testes com o urânio e o tório radioativos, recebendo o Prêmio Nobel em 1938 pelo que se acreditou serem novos elementos químicos.

A palavra grega átomo quer dizer, como se sabe, indivisível, e a ideia de partir a unidade básica da matéria ainda era estranha para os cientistas. Naquele mesmo ano, entretanto, os físicos austríacos Lise Meitner e Otto Frisch provaram que Fermi obtivera, isto sim, a quebra do núcleo de urânio em elementos menores, com grande liberação que, a partir de determinada quantidade de material, a chamada massa crítica, a fissão do núcleo do átomo criaria uma rápida reação em cadeia gerando ainda mais energia. O boneco de gesso em tamanho natural do físico J. Robert Oppenheimer, o responsável pelo laboratório de Los Alamos, recebe os visitantes do Museu Bradbury com um olhar triste. Na verdade, muitos dos cientistas envolvidos no projeto de construção da bomba não comemoraram propriamente o seu sucesso.

Num documento conhecido como Franck Report, eles pediram ao governo americano que não utilizasse a bomba. Mas o imprevisto aconteceu – o presidente Franklin Roosevelt morreu e Harry Truman assumiu, autorizando o bombardeio ao Japão. Desde aquela época, a energia nuclear saiu definitivamente do controle de um punhado de cientistas para se tornar propriedade cada vez mais comum. A França começou desenvolvendo energia nuclear para fins pacíficos, passando em 1960 a testar suas próprias armas. Os chineses começaram seu programa nuclear em 1958 com a ajuda soviética. Em 1964 testaram sua primeira arma de urânio e avançaram rápido para o estágio dos mísseis termonucleares, alcançado em explosão nuclear em 1980. A Índia também realizou uma explosão nuclear em 1974, demonstrando que não só os países ricos podem ter armas desse porte.

Calcula-se que já tenham sua bomba ou estejam em condições de produzi-la a curto prazo cerca de vinte outros países, entre eles África do Sul, Argentina, Brasil, as duas Coreias, Formosa, Irã, Iraque, Israel, Líbia e Paquistão. Ironicamente, a ameaça da proliferação de armas nucleares no Terceiro Mundo coincide com o sepultamento (que se espera definitivo) da Guerra Fria entre os blocos militares comandados por Washington e Moscou. Nas palavras de Joni Hezlep, de Albuquerque, “as armas que se podem ver num museu são as mais importantes: servem para lembrar que são um seguro de vida; é uma maneira terrível de ver o problema, mas a realidade é essa. São dissuasivas, não são?”

Os arsenais que ameaçam a Terra….

O projeto para a construção de armas termonucleares ou bombas H (de hidrogênio) começou já em 1942, paralelamente ao desenvolvimento das armas de fissão, mas não foi uma prioridade, mesmo depois da guerra, pois dependia de um potente sistema de aquecimento. Para se ter uma ideia da potência desse sistema, basta dizer que o Sol é uma bomba termonuclear, que consome deutério, o hidrogênio radioativo, a 10 milhões de graus centígrados. Em uma bomba, só a energia liberada por um mecanismo de fissão forneceria a temperatura suficiente para a ignição do combustível de deutério. A fissão ou quebra do núcleo – utilizada nas bombas lançadas contra o Japão – com certeza fundiria os átomos de deutério, liberando energia muitas vezes superior.

Tamanha energia despertou muitos cientistas para o fato de que o efeito devastador dessas armas não se restringiria a alvos militares e eles torciam para que ela jamais fosse produzida. Mas com a Guerra Fria entre EUA e URSS essa esperança foi por água abaixo. A informação dos primeiros computadores nos laboratórios militares simplificou cálculos tidos como quase impossíveis, viabilizando o teste inicial com a bomba H em 1952. As ogivas termonucleares, junto com a miniaturização e o refinamento dos mecanismos de controle de sua direção, representaram um salto tecnológico significativo no aperfeiçoamento dos arsenais atômicos na década de 50.

São dessa época os mísseis de longo alcance Pershing, Atlas (o primeiro intercontinental), Titan I e II, capazes de acertar com uma precisão de 200 metros um alvo a até 8 mil quilômetros, como a distância entre a capital brasileira, Brasília, e a cidade americana de Nova York. O desenvolvimento de combustíveis sólidos, mais facilmente armazenados, levou à criação, em 1958, do míssil submarino Polaris, além do Minuteman, o primeiro a ser lançado de um silo subterrâneo, como os que aparecem no filme O dia seguinte. Suas versões mais recentes datam de 1971. Trata-se do Minuteman III e do Poseidon, cujas múltiplas ogivas podem ser dirigidas a alvos diferentes após o lançamento.

A última palavra em arma nuclear nos Estados Unidos é o míssil MX, ou Peacekeeper (Mantenedor da paz), desenhado para lançar 21 ogivas de 10 megatons cada para alvos separados a mais de 8 mil quilômetros. A Inglaterra, que desenvolveu o míssil Blue Streak logo após a Segunda Guerra Mundial, cancelou o seu programa de pesquisas em 1960. A França aproveitou a tecnologia de foguetes no desenvolvimento do veículo espacial Diamant. A União Soviética seguiu os americanos na corrida armamentista, produzindo a série Frog de grandes foguetes de combustível sólido, além de inúmeros mísseis: Scud, Skean, Savage, SS-6, Sark, Serb, Sawfly, todos eles altamente móveis, montados em veículos de transporte ou submarinos nucleares.

Os foguetes Sasin e Scrag, de 1964, foram responsáveis pelos lançamentos de veículos em órbita. E foi o míssil soviético Sandal, montado em Cuba, que quase provocou a Terceira Guerra Mundial em 1962. Diante do bloqueio e das ameaças de ação militar dos Estados Unidos, os mísseis foram desmontados e retirados. A mesma sorte não tiveram os habitantes do atol de Bikini, no Pacífico Sul. Eles é que foram removidos, pouco antes dos primeiros testes atômicos americanos, em 1946. A explosão de 23 bombas ali fez desaparecer várias ilhas e transformou toda a região num inferno radioativo.

Face a face com a bomba

Mais de 100 testes nucleares ao ar livre sacudiram o Deserto de Nevada, nos Estados Unidos, a partir de 1951. As sequelas que deixaram só em anos recentes vieram a público. Este é o tema do texto a seguir.

Saint George, no estado americano de Utah, situa-se no coração da região mórmon. Aí, como em muitas outras tranquilas cidades que pontilham o deserto, a vida e a morte são vistas como dádivas do céu. Por-tanto, em 27 de janeiro de 1951, foi como mais um sinal de divina inspi-ração governamental que os cidadãos de Saint George aceitaram uma de-tonação atômica que devastou o sítio de testes de Nevada — a primeira de mais de uma centena que brotariam no local nos doze anos seguintes. Mas o programa americano de testes de armas nucleares nunca foi benigno, fa-to que só se tornou claro em anos re-centes, quando vieram a público documentos até então secretos.

Nuvens de radiação, tão tóxicas quanto às liberadas pela explosão do reator soviético em Chernobyl, verteram resíduos rosados sobre pontos tão distantes como a Nova Inglaterra, a mais de 2 000 quilômetros, envenenando o leite, matando o gado e afetando moradores ao longo da trajetória. Milhares de soldados, com ordem de realizar manobras ao pé das detonações, foram expostos a debilitadoras doses de radiação, da mesma forma que eletricistas ou encanadores empregados no sítio de teste. Nos anos seguintes, ex-militares, funcionários do sítio de testes e gente da vizinhança foram vítimas de câncer em proporção alarmante.

Ao contrário de muitos civis feridos em guerra, essas vítimas da Guerra Fria não foram advertidas sobre as ameaças contra sua saúde. Na verdade, foram submetidas a uma cruel campanha de desinformação. Soldados no sítio de testes receberam informações falsas: “O sol, e não a bomba, é seu pior inimigo”. Mulheres que sofriam efeitos do envenenamento pela radiação — perda de cabelo, sérias queimaduras da pele — tiveram alta dos hospitais próximos com diagnósticos de “neurose” ou de “síndrome de dona-de-casa”. Quando uma moradora da área ameaçada relatou à Comissão de Energia Atômica (AEC em sigla inglesa) que seu filho e vários vizinhos haviam morrido, aparentemente de câncer induzido pela radiação, ouviu seca resposta: “Vamos manter o senso de proporção sobre a chuva radioativa”.

Quaisquer riscos a que a mulher e seus vizinhos “pudessem” ter sido expostos “representavam um pequeno sacrifício” em nome da dissuasão (ou seja, do fortalecimento bélico do país). Poucos documentos expressam de modo tão eloquente o tributo humano àquele “pequeno sacrifício” quanto as fotos de Carole Gallagher. De 1983 a 1990, ela viveu e viajou em diversos Estados do oeste e sudoeste. Em áreas que a AEC antes designara como “virtualmente inabitadas”, Gallagher ganhou a confiança de diversos veteranos, funcionários do sítio de testes e moradores da área de risco, involuntariamente expostos à radiação.

Os retratos que colheu retêm a tradição do humanismo: diretos e sutis, trágicos mas nunca apelativos. Seria fácil descartar o trabalho de Gallagher como um desafortunado capítulo de uma história encerrada. O Decreto de Compensação por Exposição à Radiação, de 1990, estende às vítimas um pedi-do oficial de desculpas e uma oportunidade de indenização. Os testes nucleares subterrâneos, realizados a partir de 1961 em Nevada, podem ter fim dentro de pouco tempo em virtude de uma decisão assinada em agosto de 1992 pelo então presidente George Bush. Mas, para as personagens de Gallagher, as feridas da Guerra Fria continuam abertas.

Críticos do Decreto de Compensação apontam que ele oferece parca recompensa — de 50 000 a 100 000 dólares — e somente a alguns segmentos da população atingida. Regiões com direito a compensação fazem divisa com regiões que não têm esse direito, quase ao acaso. Dos mais de vinte tipos de câncer classificados pela Academia Nacional de Ciências como radiogênicos (ou causados por radiação), o decreto considera que apenas treze dão direito a remuneração. Também não prevê pagamentos à segunda geração das vítimas: isto é, crianças com defeitos de nascimento, câncer ou outros danos nos cromossomos, resultantes da exposição dos pais à radiação.

Recursos interpostos sob outras leis, válidas apenas para ex-soldados, levaram ao pagamento de menos de 3% das reivindicações feitas até meados de 1993. Isso evidencia, dizem os críticos, que tanto as leis como sua aplicação são inadequadas. E, afinal, mesmo os testes subterrâneos representam risco para pessoas que vivem na direção que o vento sopra, a partir do local da explosão. Dos mais de 760 testes subterrâneos conhecidos, pelo menos 126 liberaram radioatividade para a atmosfera, embora as doses tenham se tor-nado relativamente pequenas desde 1971. Persiste também o problema de os vazamentos radioativos não serem anunciados.

Em maio de 1986, por exemplo, au-toridades no sítio de testes tentaram disfarçar a radiação gerada pela detonação “poderoso carvalho”: deixaram que a poeira letal escapasse no momento que os ventos sopravam resíduos de Chernobyl sobre o local. Não é coincidência que os testes são realizados, ou que se deixam escapar os vazamentos, apenas quando o vento sopra para leste, direção oposta às cidades de Los Angeles e Las Vegas. Um técnico do Departamento de Energia (DOE) explicou esse procedimento a Gallagher dizendo que “as pessoas em Utah (Estado que fica a oeste de Nevada) não ligam a mínima para radiação”.

Tal explicação é típica do menosca-bo que a indústria federal de armas nucleares manifesta sobre a segurança de seus empregados, do público e do meio ambiente. No ano passado, o DOE teve de responder em tribunal à acu-sação de ter ajudado a fábrica de ar–mas Rocky Flats, perto de Golden, no Colorado, a esconder crimes ambientais da Agência de Proteção Ambiental. No Novo México, está para ser aberto um depósito de resíduos nucleares que não satisfaz nenhum dos regulamentos ambientais federais. Portanto, o que a câmara de Gallagher registra não é uma triste anomalia de outras épocas, mas as primeiras vítimas de uma traição à confiança popular. Quando lhes dão face e voz, elas expressam dignidade e exigem a verdade de maneira tão suave e poderosa quanto à radiação que assombra nossas vidas.

Ken Case: o “caubói atômico”, como era conhecido pelos outros funcionários do sítio de testes, foi contratado pela Comissão de Energia Nuclear, nos anos 50, com a função de conduzir gado para a região de impacto imediato das detonações, momentos depois de acontecerem. Assim os cientistas de Los Alamos podiam medir os efeitos da radiação. Case sofreu onze intervenções cirúrgicas, inclusive para tirar o rim e boa parte do intestino, antes de morrer em 1985.“Eles tiveram câncer e nós também”, disse o ex-funcionário sobre os animais que conduzia. “Eles apenas morreram mais depressa.”

Walter Adkins com a mulher, Marvel: motorista de ônibus no sítio de testes, teve tumores na pele, esôfago e pulmão, morrendo em 1988. Foi surpreendido pela chuva radioativa de Banenberry, um teste subterrâneo realizado em 1970, do qual vazou grande quantidade de radiação para a atmosfera. “Ela veio caindo como uma coisa de aspecto rosado. Eu podia vê-la em minha mão. Me disseram: a radiação nunca vai prejudicá-lo.”

Della Truman: como muitos outros moradores da cidade de Enterprise, uma área de risco em Utah, desenvolveu nódulos na tireoide por beber leite contaminado com iodo radioativo. Embora tenha sido diversas vezes examinada por médicos da Comissão de Energia Nuclear, nunca foi informada dos resultados dos exames. Morreu em 1987 de um ataque cardíaco induzido por “tempestade da tireoide”, uma grave aceleração do metabolismo. Seu filho Preston Jay Truman sofre de problemas radiogênicos crônicos. “Na escola nos mostraram um filme chamado A de átomo, B de bomba, conta ele. Muitos de nós, que crescemos naquele período, pensávamos: C de câncer, D de desaparecimento”.

Autoria: Marcelo Rauber

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