Biografias

Miguel de Cervantes Saavedra

Miguel de Cervantes Saavedra é considerado uma das figuras fundamentais da literatura universal. Igual importância nas letras ocidentais adquiriu seu romance Don Quixote de la Mancha, que se converteu no paradigma do romance moderno. Com uma temática rica e variada, plena de humor e ternura, este livro alcança vários tipos de leitores.

Miguel de Cervantes Saavedra, o mais importante nome literário da Espanha, nasceu em 1547 em Alcalá de Henares. Filho de um cirurgião que se apresentava como nobre e de mãe de origem judia convertida ao cristianismo, pouco se sabe de sua infância. Escreveu quatro poemas que foram publicados por seu mestre e isto marcou seu “début” literário. Saiu intempestivamente de Madri para Roma e lá ficou por vários meses.

Em 1574, lutou na Batalha de Lepanto, onde foi ferido na mão esquerda por um tiro de espingarda. No ano seguinte, tomou parte na campanha da Áustria em Navarino, Corfu e Tunísia. Voltando para a Espanha por mar, foi aprisionado por corsários algerianos. Ficou preso como escravo na Algeria por cinco anos. Conseguiu escapar e voltar para Madri em 1585. Nesse mesmo ano casou-se com Catalina de Salazar, 22 anos mais moça do que ele. Publicou então La Galatea, novela pastoral. Dois anos depois, partiu para Andaluzia por onde andou por dez anos, como fornecedor da Armada Invencível e como cobrador de impostos.

Retrato de Miguel de Cervantes

Em 1597 foi para a cadeia em Sevilha por causa de problemas financeiros com o governo. Em 1605, já estava em Valladolid, então com um posto no governo, quando começou em Madri a primeira parte do Don Quixote. Voltava assim para o mundo literário.

Nos últimos nove anos de sua vida, apesar das mortes em família e de problemas pessoais, Cervantes solidificou sua posição como escritor. Publicou as Novelas Ejemplares em 1613, Viajem ao Parnaso em 1614 e, em 1615, Ocho Comedias y Ocho Entremeses e a segunda parte de Don Quixote. Morreu em abril de 1616.

Até hoje o mundo comenta o livro Dom Quixote de la Mancha que o espanhol Miguel de Cervantes de Saavedra (1547-1616), lançou em duas partes: a primeira em 1605 e a segunda em 1615.

Dom Quixote

El ingenioso hidalgo don Quijote de la Mancha teve seis edições no mesmo ano de sua publicação. Traduzido para o inglês e o francês, foi amplamente difundido em toda parte, até se tornar um dos mais lidos romances em todo o mundo, por crianças e adultos. Para fazer frente à falsa segunda parte lançada por Avellaneda, Cervantes, espicaçado pela fraude, publicou sua própria segunda parte em 1615. Já no prólogo da primeira afirmara ser a obra “uma invectiva contra os livros de cavalaria” que, durante muito tempo, transtornaram a cabeça das pessoas.

Se é certo esse propósito satírico, ou se há no livro um retrato irônico e melancólico da Espanha imperial e guerreira, o fato é que o romance supera de muito quaisquer intenções primeiras para transformar-se numa grande alegoria da condição e do destino humano, e do sentido universal da vida. A partir da aventura, que é o cerne da obra, Cervantes elabora a estrutura do romance num encadeamento de viagens ou saídas dos personagens, que vão sendo compostos à medida que se desenvolve a ação.

O idealismo da cavalaria e do realismo renascentista e picaresco são simbolizados nos dois personagens centrais. D. Quixote representa o lado espiritual, sublime sob certos aspectos, e nobre da natureza humana; Sancho Pança, enquanto isso, vive o aspecto materialista, rude, animal. A par disso, o humanismo e o significado filosófico conferem maior universalidade à obra, que é vista como símbolo da dualidade do ser humano, voltado para o céu e preso à terra.

Esse dualismo, muito bem ressaltado pela ideologia barroca dominante na época de Cervantes, foi muito bem assimilado por ele. É um motivo de natureza universal, particularizado em cada criatura, que o mestre procura disfarçar sob a forma de aventura cavalheiresca, inserida num mundo de fantasia: de um lado, o amor do honesto e do ideal; do outro, o do útil e do prático, dois princípios de vida que se dão as mãos no cavaleiro e no escudeiro.

Situado entre os mundos renascentista e barroco, os elementos característicos de ambos se juntam nele, com predomínio do barroco. A crítica salientou a unidade da composição, típica do barroquismo, em que o grande número de episódios não desfrutam de existência autônoma, mas vivem interligados num bloco geral. Também são traços peculiarmente barrocos a disposição dos personagens em profundidade, a antítese – no plano geral, na forma, nos enlaces abstrato-concretos -, os tipos de metáfora, o paradoxo, a hipérbole, a alusão, o jogo de palavras, o encadeamento dos componentes da frase, a série assindética, o próprio dinamismo do estilo.

Por esses e outros dados da atitude barroca, o autor apoia-se em contrastes que tornam o livro cuerdo y loco (prudente e louco) e o situam entre a pregação moral e o realismo picaresco, na chamada “ordem desordenada” própria dessa tendência. Como ficou claro para os estudiosos, o traçado do romance obedece a um plano rigoroso, em que as várias excursões do cavaleiro se compõem em movimentos circulares, com os quais expressa a noção barroca do destino e a preocupação com o mundo, em que acaba por descobrir o vazio e a inanidade, a desilusão e o desengano, resultados muito distintos das peregrinações medievais e góticas, em linha reta, em direção a Deus ou à sepultura.

Exatamente por isso, o modo como o escritor soube resolver a tensão narrativa entre o real e o imaginário é uma de suas contribuições essenciais. O extraordinário é que, em sua recriação do plano ficcional, ele mantém as dimensões, as proporções, uma animação e uma estrutura de universo real. Reencontra-se o homem, estabelece-se sua moral, reconstitui-se sua verdade. O mundo, à primeira vista fantástico, é iluminado por uma virtude concreta, a caridade, ou antes, o amor do homem pelas coisas, pelos bichos, pela natureza e pelo próprio homem, redescoberto em sua dignidade primordial.

A primazia desse aspecto afetivo traduz-se numa ética de bondade, que se manifesta, em seu mais alto grau, nas relações entre D. Quixote e Sancho Pança, o cavaleiro e o escudeiro, o senhor e seu amigo, duas figuras contrastantes e ligadas por uma fraternidade de quase cerimoniosa cortesia, pela qual se prezam e se respeitam. É impossível deixar de reconhecer nesse encontro, em suas conversas e decisões, uma das imagens mais significativas da história do relacionamento humano.

Além da bondade, há em toda a narrativa uma profunda valorização da liberdade e da justiça. No caso da primeira, um dos melhores exemplos é a passagem em que Cervantes descreve a existência dos ciganos, integrados à natureza e à espontaneidade do amor. Houve, porém, quem preferisse ver a história como relato do fracasso trágico de um idealismo mal informado, assim como fracassaram na realidade as altas intenções da Espanha monárquico-católica e as do próprio Cervantes, que no início de sua vida pretendeu tornar-se soldado heroico e acabou como humilde funcionário público, na prisão e na rotina do trabalho literário.

A primeira tradução do D. Quijote para a língua portuguesa foi impressa em Lisboa em 1794. Seguiram-se várias outras, entre as quais a de Antônio Feliciano de Castilho, que apareceu de 1876 a 1878 no Porto, ilustrada com desenhos do francês Gustave Doré. Essa mesma versão foi retomada em 1933 pela Livraria Lello & Irmão, em dois grandes volumes, e difundida em edição mais simples tanto em Portugal como no Brasil. No Brasil foi publicada na década de 1980 a tradução feita por Almir de Andrade e Milton Amado.

Poesia e teatro

A poesia de Cervantes não tem as mesmas qualidades de sua prosa de ficção, embora o próprio autor apreciasse muito seu soneto sobre o túmulo de Filipe II. Tampouco interessa hoje o poema didático Viaje al Parnaso (1614), espécie de panorama crítico da literatura espanhola de sua época. De pouco valor é também o romance pastoril La Galatea (1585).

Dramaturgo de inspiração variada e muitos recursos, Cervantes não teve, porém, grande êxito no teatro porque foi eclipsado por Lope de Vega. Sua produção teatral está reunida no volume Ocho comedias y ocho entremeses (1615; Oito comédias e oito entremezes). A mais conhecida de suas peças é a tragédia histórico-patriótica Numancia, obra pseudoclássica. As comédias, com poucas exceções, são fracas. Muito melhores são os entremezes, pequenas peças humorísticas, de um realismo tipicamente espanhol.

Novelas exemplares

Não é justo explicar a glória literária de Cervantes exclusivamente pelo D. Quijote. Se não tivesse escrito esse grande romance, estaria imortalizado como autor de Novelas ejemplares (1613; Novelas exemplares), um dos mais importantes volumes de contos da literatura universal. O adjetivo ejemplar refere-se à intenção moral de Cervantes ao escrever essas pequenas obras-primas, intenção que nem sempre é evidente, porque constam do volume três séries de novelas muito diferentes. Novelas idealistas, de aventuras e acidentes perigosos que acabam bem são “El amante liberal”, “La española inglesa”, “Señora Cornelia” e sobretudo a magistral “La fuerza del sangre” (“A força do sangue”).

Ideal-realistas são “La ilustre fregona” (“A criada ilustre”) e “La gitanilla” (“A ciganinha”). O realismo de Cervantes triunfa em “El casamiento engañoso”, em “El celoso extremeño” (“O estremenho ciumento”), na novela picaresca “Rinconete y Cortadillo” e no “Licenciado Vidriera”, cujo personagem principal antecipa o D. Quixote, e sobretudo no “Coloquio de los perros” (“Diálogo dos cães”), verdadeiro testamento da melancólica sabedoria de vida de Cervantes.

Persiles

O próprio Cervantes parece nunca ter esquecido o desastre de suas esperanças idealistas. Embora critique humoristicamente (no “Coloquio de los perros”) a falsidade do gênero pastoril, sempre pensou em escrever uma segunda parte de La Galatea, e incluiu ainda no Don Quijote um episódio pastoril, a história de Marcela. Tampouco parece ter sido intransigente a aversão de Cervantes ao romance de cavalaria, pois pertence a esse gênero sua última obra, Los trabajos de Persiles y Segismunda. O enredo complicado dessa história de aventuras, narrada em estilo retórico e altamente romântico, torna hoje difícil sua leitura, em que Azorín descobriu uma qualidade especial de angústia.

Cervantes morreu em Madri em 23 de abril de 1616. Poucos dias antes de sua morte escreveu o prefácio de Persiles (publicado postumamente em 1617), em que cita os velhos versos: “Puesto ya el estribo, / Con las ansias de la muerte.”