Literatura

Trovadorismo

O trovadorismo surgiu provavelmente entre os séculos X e XI e floresceu na península Ibérica do século XII ao século XIV.

Os trovadores eram compositores de cantigas (amorosas, religiosas ou satíricas) e eram muito respeitados na Idade Média, porque deles provinha a música que servia para acompanhar as festividades ou as reuniões solenes das cortes, assim como os banquetes ou as núpcias. Do trovadorismo português poucas notações musicais (partituras) sobreviveram até nós: o que temos na maioria são apenas as letras das cantigas coletadas em grandes livros manuscritos e ilustrados, chamados Cancioneiros. Chegaram até nós apenas três cancioneiros: Cancioneiro da Ajuda, Cancioneiro da Vaticana e Cancioneiro da Biblioteca Nacional. São aproximadamente 1680 cantigas de 153 trovadores.

A função dos trovadores nas cortes medievais era compor músicas como estampidos, bailias e cantigas para as cerimônias, festividades, núpcias e banquetes.

Executar a música (tocar e cantar) era função de grupos de artistas liderados por menestréis, segréis (músicos) e jograis (cantores), compostos por homens e mulheres pagos para esse trabalho.

Trovadores tocando instrumentos musicais
Dois trovadores executando seus instrumentos musicais: o arrabil (à esquerda) e o alaúde.

Os grupos musicais podiam ser fixos numa corte ou itinerantes (viajando de uma corte a outra). Ocorria, bem menos frequentemente, que o próprio trovador tomasse parte nas funções como músico ou cantor.

Para ter acesso livre à vida na corte, o trovador também precisava de ser nobre, em geral um nobre de baixa linhagem — filho bastardo ou vassalo empobrecido ou desertor de lutas e batalhas.

Com o transcorrer da Idade Média, foram surgindo trovadores de altas linhagens da nobreza — como os reis D. Sancho (século XII), D. Afonso X (século XIII) e D. Dinis (séculos XIII-XIV) —, o que prova o prestígio e a influência da arte trovadoresca nas cortes ibéricas.

Prova também desse prestígio é o fato de que muitos músicos foram ganhando espaço nas cortes como trovadores — caso do jogral João Zorro (século XIII) e do segrel Martim Codax (séculos XIII-XIV).

Eram três os tipos de cantigas, ou cantares:

  • Cantigas lírico-amorosas;
  • Cantigas satíricas;
  • Cantigas religiosas.

CANTIGAS LÍRICO-AMOROSAS

Eram de dois tipos, bem distintos: de amor e de amigo.

CANTIGAS DE AMOR

Refletiam sentimentos de um eu-lírico masculino, que reclama de sua coita (sofrimento por um amor rejeitado). A mulher que o faz sofrer é retratada sempre como superior, ingrata, cruel até, impiedosa. Mas, mesmo assim, o tratamento que dispensa a ela é respeitoso, na justa medida do amor cortês: não divulga o nome da amada, nem se excede na exposição emocional. Essa amada é chamada apenas de “senhor” ou “dona” – no galego-português, língua falada na época, não havia ainda a distinção de gênero em senhor/senhora; a pronúncia, aliás, era a mesma para o masculino e para o feminino (“o senhor”, “a senhor”).

As cantigas de amor têm como modelo as cantigas provençais. As cortes de Provença, na França, eram um rico posto de passagem de caravanas de comércio e de peregrinação religiosa a Roma ou à Terra Santa. A moda trovadoresca parece ter sido criada em Provença e difundida a outras partes pelos viajantes.

Nos cantares de amor, por conta do sentimento platônico do compositor e do traçado idealizante da mulher amada, percebemos uma linguagem mais refinada, com influências provençais no vocabulário. Todavia, essa linguagem não se distinguia muito do falar geral galego-português. Na Idade Média, a linguagem da corte e a do povo eram muito próximas: a oralidade imperava mesmo entre os nobres. Não nos esqueçamos de que a leitura e a escrita eram restritas em geral à nobreza real e a altos cargos religiosos.

A situação de vítima do amor em que se coloca o trovador e o respeito servil à mulher amada refletem o contexto das relações suserano-vassalo próprias das cortes medievais. É o que chamamos de vassalagem amorosa.

A dualidade com que é apresentada a figura feminina nas cantigas de amor reflete uma dualidade típica da época. Por um lado, a mulher é vista como um ser estranho, cruel, próximo do sobrenatural, do demoníaco — a bruxa: afinal, ela expele sangue, dá à luz, muda de humor facilmente… Por outro lado, a mulher traz parentesco com o divino: sua figura maternal, sensível, aproxima-se da imagem de Nossa Senhora. Essa imagem santa da mulher foi disseminada pela Igreja Católica e assimilada pelos códigos do amor cortês.

Temo-nos referido à figura feminina como “amada”, mas não devemos esquecer que um trovador jamais empregaria essa palavra. Na época, “amada” era a pessoa com quem já se tinha travado um contato mais íntimo (a amante), fato que o trovador não podia de modo algum mencionar, segundo os códigos do amor cortês.

Se eu pudesse desamar
a quen me sempre desamou,
e pudess’algum mal buscar
a quen me sempre mal buscou!
Assi me vingaria eu,
se eu pudesse coita dar
a quen me sempre coita deu.

Mais non poss’eu enganar
meu coraçon, que m’enganou,
por quanto me fez desejar
a quen me nunca desejou.
E por esto non dórmio eu,
se eu pudesse coita dar
a quen me sempre coita deu.

Pero da Ponte, Portugal, (século XIII)

Vocabulário:   
coita: sofrimento de amor
desemparar: desamparar
dórmio: durmo

CANTIGAS DE AMIGO

Expondo o sentimento amoroso de um eu-lírico feminino, as cantigas de amigo mostram uma moça do povo que revela suas saudades do amado ausente. Aqui, emprega-se a palavra “amado” com frequência, pois a intimidade amorosa existe de fato, não há idealizações. O que ocorre é que o amado está distante — a trabalho ou em luta ou no mar. Muitas vezes, esse amado era um homem da corte, que buscava experiência sexual com moças menos “difíceis” que as vigiadas donzelas da nobreza. Não devemos estranhar o termo “amigo”. Na época, ele era sinônimo de “amante” ou “namorado”, quando aplicado à relação entre homem e mulher. Resquício desse significado temos hoje na expressão popular “amigados”, que se refere a um casal que vive junto sem confirmação legal ou religiosa.

Numa linguagem bem simples e repetitiva, com elementos próprios do universo popular ibérico, com versos curtos e refrãos fáceis de memorizar, a moça saudosa conversa com a mãe, com as irmãs, com as amigas, com o mar, com os seres da natureza, com Deus, e vai com eles compartilhando seus anseios de rever o namorado. É de se notar a ausência de interlocutores masculinos — o que revela a itinerância dos homens do povo, na época, por conta das obrigações militares, de trabalho em outras terras ou no mar.

Embora o eu-lírico seja feminino, o autor das cantigas de amigo é o trovador. Em geral, quem cantava essas cantigas eram homens mesmo, e também as jogralesas (esposas dos jograis) e as soldadeiras (cantoras-dançarinas). Não há notícia de que tenha havido trovadoras em Portugal, como houve em Provença (a Condessa de Die, que viveu no século XII).

Ondas do mar de Vigo
Se vistes meu amigo
E ai Deus se verra cedo.

Ondas do mar levado
Se vistes meu amado
E ai Deus se verra cedo.

Se vistes meu amigo
O por que eu sospiro
E ai Deus se verra cedo.

Se vistes meu amado
O por que ei gran cuidado
E ai Deus se verra cedo.

Martim Codax (século XIII-XVI)

Vocabulário:
Vigo: cidade litorânea da Galícia, destino de peregrinações religiosas
verrá: voltará, virá
levado: agitado
o por que: aquele por quem
ei cuidado: por quem tenho carinho, atenção

CANTIGAS SATÍRICAS

Eram cantigas para situações mais descontraídas. Propunham ridicularizar os costumes sociais e as pessoas mal-queridas das cortes a que o trovador servia. Eram de maldizer e de escárnio.

CANTIGAS DE MALDIZER

Faziam crítica direta, muitas vezes mencionando o nome da pessoa criticada ou alguma característica muito evidente e conhecida dela. Por vezes, grosseiras, essas cantigas empregavam até palavrões e insultos.

Don Foão, que eu sei
que á preço de livão,
vedes que fez ena guerra
(d’aquesto soõ certão):
sol que viu os genetes,
come boi que fer tarvão,
sacudiu-s’e revolveu-se,
alçou rafe foi sa via
a Portugal.

Don Foão, que eu sei
que á preço de ligeiro,
vedes que fez ena guerra
(d’aquesto son verdadeiro):
sol que viu os genetes,
come bezerro tenreiro,
sacudiu-s’e revolveu-se,
alçou rab’e foisa via
a Portugal.

Don Foão, que eu sei
que á prez de liveldade,
vedes que fez ena guerra
(sabede-o por verdade):
sol que viu os genetes,
come can que sal de grade,
sacudiu-s’e revolveu-se,
alçou rab’e foi sa via
a Portugal.

D. Afonso Mendes de Besteiros (século XIII)

Vocabulário:
Foão: fulano (embora não mencione o nome, os ouvintes certamente sabiam de quem se tratava a cantiga, por conta do gesto de covardia relatada nela; trata-se de João Pires de Vasconcelos, que ficou famoso na corte por fugir do campo de batalha, na guerra de Granada)
preço de livão: reputação de pessoa leviana
soõ certão: estou certo
sol: assim que
genetes: ginetes, cavalos
come boi que fer tarvão: como boi que vespa ferra (como boi ferrado por vespa)
alçou rab’e foi sa via: levantou o rabo e foi embora
tenreiro: novo (apelido de João Pires de Vasconcelos)
prez de liveldade: mérito de ligeireza
cam que sai de grade: cão que sai da gaiola

CANTIGAS DE ESCÁRNIO

Faziam crítica indireta, irônica, sugestiva. Nem se revelava o nome do criticado, nem se deixava clara a crítica. Como eram criadas para provocar suspense entre os ouvintes, essas cantigas prendiam-se bastante a situações cotidianas específicas de uma corte, o que dificulta para os leitores atuais detectar qual a real intenção do escárnio.

Veja uma cantiga de Pero Garcia Burgalês (século XIII) em uma linguagem mais próxima de nós:

Embora não me queirais, donzela,
já que vos amo, vou dar-vos um conselho;
como vós não sabeis vos entoucar,
fazei quanto vos direi:
buscai quem vos entouque melhor
e vos corrija, pelo meu amor,
as formas do corpo e o cós que tendes.
E se isso fizerdes, tereis,
assim me valha Nosso Senhor,
beleza e um corpo elegante, e sereis
muito formosa e de boa cor;
se cada vez que essa touca torcer
e cada vez que tiverdes quem vos corrija,
então serás muito bela.
Ai, minha senhora, por Deus em que credes,
já que a outro ser não ouso pedir por vós;
como sempre trazeis a touca mal posta,
crede no que vou aconselhar:
em vez de alguém a corrigir por vós,
que essa pessoa corrija as formas de vosso corpo
e a maneira como falais, e se não, nem faleis.

Observe que na cantiga acima o trovador chama a atenção de uma donzela sobre o mau-gosto que ela tem em se “entoucar”, que quer dizer “pentear-se”. Porém, “entoucar” também podia significar “colocar touca [de dormir]”. Ficamos, então, em dúvida: será que o trovador não estaria satirizando uma mulher—ironicamente chamada de “donzela”
— com a qual ele dormiu? Veja a insistência em relação aos dotes físicos dela, que precisam ser “corrigidos”, melhorados, assim como sua fala
— ao final, ele pede que a moça corrija a fala ou então que se cale!

CANTIGAS RELIGIOSAS

As cantigas de temática religiosa eram de cunho devocional (exaltação à imagem de um santo) ou hagiografico (narrativas dos feitos milagrosos de um santo). O alvo mais frequente dos cantares trovadorescos religiosos era Santa Maria, a mãe de Cristo.

Fonte: MOISES, Massaud.A Literatura Portuguesa.30ª ed., São Paulo: Cultrix, 1999.

Por: Renan Badine

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