Literatura

O Teatro de Gil Vicente

Em 1502, o Monólogo do vaqueiro ou Auto da visitação, de Gil Vicente, dá início ao teatro em Portugal. A apresentação do monólogo foi feita em comemoração ao nascimento do filho de D. Manuel e D. Maria Castela, D. João III. A peça foi encenada pelo próprio autor que assumiu a personagem como se fosse um vaqueiro e recitava saudava o nascimento de D. João III. Após isso, Gil Vicente passou a ser protegido pela rainha-mãe, D. Leonor, e foi incumbido de divertir a corte da sua época.

Os primeiros trabalhos do teatrólogo receberam influências de autores espanhóis, dentre eles Torres de Navarro que escrevia farsas. Porém, com o tempo, Gil Vicente começou a produzir textos com características extremamente particulares, sendo adepto do lema moralista. “Rindo, castigam-se os costumes” é, talvez, uma das frases mais famosas do teatrólogo e era nisso que ele acreditava, isto é, por meio do humor é possível corrigir os costumes e denunciar a hipocrisia da sociedade.

Em suas obras satirizou o povo, o clero e a nobreza, maiores alvos de suas críticas. Gil Vicente não temia em apontar o que de errado via na sociedade de sua época, acreditava que era necessário restabelecer a moral e a religiosidade. Devido a isso se tem a denominação dos “autos de moralidade”. Assim, suas obras faziam o entretenimento nos ambientes da corte. O teatro vicentino era simples no que tange à estrutura cênica, pois não havia preocupação com o cenário luxuoso, apenas utiliza-se de materiais simples para encenar suas peças.

Por abordar temas inerentes a toda sociedade em qualquer tempo e espaço, as obras vicentinas são atemporais e as problemáticas nelas apresentadas são pertinentes nas sociedades da atualidade. Gil Vicente é autor de 44 peças, sendo 17 escritas em português, 16 bilíngues e 11 em castelhano, dentre elas estão autos e farsas. Nos autos vicentinos a religiosidade aparece de maneira marcante, como exemplo, nos conflitos entre anjos, demônios e outros, elementos também são personificados como a virtude. São autos: Monólogo do vaqueiro, Auto da Índia, trilogia das barcas, Auto da Lusitânia e Auto da alma. Nas farsas está presente o lado mais marcante da crítica social vicentina. São farsas: Farsa de Inês Pereira, O velho da horta e Quem tem farelos?

Classificação das obras de Gil Vicente

A classificação do teatro de Gil Vicente esbarra em di­ficuldades intransponíveis: o entrelaçamento de gêneros, formas, fontes e motivos, a diversidade formal e temática, além da impossibilidade de se estabelecer uma cronologia confiável da evolução de sua obra.

A Copilaçam de Todalas Obras de Gil Vicente, 1562, póstuma, organizada pelo filho do autor, Luís Vicente, clas­sifica suas peças em cinco categorias: peças de devoção (de assunto religioso), comédias, tragicomédias, farsas e obras meúdas (composições menores de assunto variado). Essa classificação não atende a critérios muito nítidos e apoia-se em uma edição defeituosa, certamente atingida pe­la censura inquisitorial que, já na segunda edição, de 1586, expurgou da Copilaçam cerca de dez peças e mutilou qua­se todas as demais.

Antônio José Saraiva e Oscar Lopes distinguem os seguintes gêneros teatrais na obra gilvicentina:

  • os autos pastoris – éclogas encenadas, à maneira de Juan dei Encina, como monólogos ou diálogos de pastores;
  • os autos de moralidade – compreendendo as repre­sentações sobre o nascimento ou sobre a ressurreição de Cristo, diretamente inspiradas na Bíblia e na teoria católi­ca da Redenção, e as peças mais pronunciadamente alegó­ricas, nas quais as alegorias religiosas servem de pretexto para a inclusão da sátira social e de personagens profanas, o que se vê no Auto da Barca do Inferno;
  • as farsas – com modalidades que incluem: o simples episódio cômico extraído de um flagrante da vida da per­sonagem típica, ou a sucessão de quadros (sketches) cômi­cos aparentemente sem ligação, até as farsas mais desen­volvidas, com enredo articulado, como as obras-primas Far­sa de Inês Pereira e O Velho da Horta;
  • os autos cavaleirescos – encenações de episódios sentimentais cavaleirescos, ao gosto da corte e
  • as alegorias de tema profano ou fantasias alegó­ricas – encenações grandiosas, em torno de uma alegoria central, envolvendo episódios de farsas, cenas de amor, cânticos e até bailados, como no teatro de revista dos nos­sos tempos.

Os monólogos e os sermões burlescos são ainda mo­dalidades que se podem distinguir, entre várias outras.

Gêneros principais, cronologia e evolução

A – Os autos: inspirados nos mistérios, milagres e moralidades medievais, encerram uma intenção moralizante ou religiosa. Suas personagens não são seres indivi­dualizados, com psicologia própria; são antes abstra­ções, generalizações, símbolos ou alegorias que perso­nificam anjos, demônios, vícios,, virtudes, instituições sociais, tipos humanos, categorias profissionais etc. Ori­ginalmente caracterizados pela intenção didática (reli­giosa, moral ou política), Gil Vicente acrescentou aos seus autos a dimensão satírica e polêmica. Ao lado de alegorias como a Luxúria, a Avareza, o Trabalho, a Comunhão, o Tempo, a Sabedoria, a Igreja, a Espe­rança, o Pecado, desfila uma vasta galeria de tipos hu­manos e sociais, representativa de toda a sociedade portuguesa, no limiar do Renascimento.

B – As farsas: retratam os tipos humanos e sociais, por meio da exploração de efeitos cômicos, da caricatura e do exagero. A farsa gilvicentina é uma poderosa ar­ma de crítica e de combate a serviço dos valores mo­rais que defende. Por meio do riso, desnudam-se as ma­zelas da sociedade pré-renascentista. Aproximam-se do lema das comédias latinas de Plauto e Terêncio: “ridendo castigai mores” (“rindo, corrigem-se os cos­tumes”). Elementos farsescos são frequentes também nos autos, e não se pode falar em uma distinção nítida entre as modalidades dramáticas que Gil Vicente pra­ticou.

A distribuição cronológica de suas peças, em termos aproximados, pode ser apresentada assim:

1502 – Auto da Visitação (Monólogo do Vaqueiro)
1504 – Auto de S. Martinho
1506 – Sermão perante a Rainha D. Leonor
1509 – Auto da índia; Auto Pastoril Castelhano
1510 – Auto dos Reis Magos; Auto da Fé
1512 – O Velho da Horta
1513 – Auto dos Quatro Tempos; Auto da Sibila Cassandra
1514 – Exortação da Guerra
1515 – Quem Tem Farelos?; Auto da Mofina Mendes (Mistérios da Virgem)
1517 – Auto da Barca do Inferno
1518 – Auto da Alma; Auto da Barca do Purgatório
1519 – Auto da Barca da Glória
1520 – Auto da Fama
1521 – Cortes de Júpiter; Comédia de Rubena; Auto das Ciganas
1522 – D. Duardos
1523 – Farsa de Inês Pereira; Auto Pastoril Português; Auto de Amadis de Gaula
1524 – Comédia do Viúvo; Frágua d’Amor; Auto dos Físicos
1525 – O Juiz da Beira
1526 – Templo de Apoio; Auto da Feira
1527 – Nau de Amores; Comédia sobre a Divisa da Cidade de Coimbra; Farsa dos Almocreves; Tragicomédia da Serra da Estrela; Breve Su­mário da História de Deus, seguido do Diálo­go dos Judeus sobre a Ressurreição
1528 – Auto da Festa
1529 – Triunfo do Inverno (e do Verão)
1530 – O Clérigo da Beira
1532 – Auto da Lusitânia
1533 – Romagem dos Agravados
1534 – Auto da Cananeia
1536 – Floresta de Enganos

Reconhecem-se três fases na evolução da poesia dra­mática de Gil Vicente:

Primeira fase:

– Marcada pela herança medieval, pela influência espa­nhola de Juan dei Encina e pela predominância dos au­tos pastoris e outras peças de assunto religioso. A popu­lação do palco é constituída de pastores, e a língua é o dialeto saiaguês, falar típico de Saiago, região da pro­víncia de Zamorra, na Espanha, fronteiriça das serras da Beira Lusitana. A ação dramática é rudimentar, expres­sando com candura e simplicidade os temas bíblicos e bucólicos. São desta fase: o Monólogo do Vaqueiro, o Auto Pastoril Castelhano, o Auto dos Reis Magos, entre outros.

Segunda fase:

– Gil Vicente liberta-se da influência de Juan dei Encina. O saiaguês é substituído pela linguagem nacional po­pular, mesclando diversos registros: a linguagem culta da elite, o lirismo do Cancioneiro Geral, a fluência do tom coloquial, a gíria, a linguagem chula, o calão das personagens de extração popular, o latim eclesiástico e jurídico propositadamente estropiados, alargando o efei­to cômico. Predominam a sátira dos costumes e dos ti­pos sociais da época e a atitude crítica. Os temas reli­giosos ressurgem algumas vezes, mas agora são postos em função da sátira. Nesta fase, Gil Vicente nacionaliza o seu teatro, inicia o tratamento dos grandes temas so­ciais e amadurece uma poesia dramática de alta densida­de crítica, reugiosa, lírica, filosófica e psicológica, reves­tida de uma linguagem colorida, mordaz, de cunho a um só tempo pessoal e nacional. São desta fase: Quem Tem Farelos?, O Velho da Horta, o Auto da índia e a Exorta­ção da Guerra.

Terceira fase:

– É a fase de plena maturidade. A galeria de tipos alarga-se para oferecer uma substancial reconstituição da so­ciedade quinhentista, dos excluídos sociais à alta nobre­za, passando pelos camponeses, ciganos, judeus, alcoviteiras, parvos, padres libertinos, burgueses ganancio­sos, fidalgos decadentes, artesãos desonestos, magistra­dos corruptos, agiotas, usurpadores. Esses tipos são de­finidos não só pelas ações, hábitos, vestuário, mas tam­bém pela linguagem peculiar a cada um deles.

O diá­logo torna-se mais fluido, gracioso e mordaz. A captação de flagrantes da vida real, tipos e ambientes amplia o poder de evocação realista e o relevo caricatural. A crítica aprofunda-se e consegue transcender o caráter individua­lista dos tipos humanos, para universalizá-los. Amparado na corte por uma carreira bem-sucedida, dedica-se à tragicomédia alegórica de grande espetáculo e enriquece sua dramaturgia com a inclusão de novos elementos: a mitolo­gia, o enredo novelesco, o conto dramatizado e a alegoria fantasista.

A Trilogia das Barcas, a Farsa de Inês Pereira, o Auto da Lusitânia são algumas das mais expressivas criações de Gil Vicente. Do ponto de vista cênico é um tea­tro rudimentar, primitivo, baseado na espontaneidade e na improvisação. Sua grande qualidade é a altíssima poesia dramática em que está vazado, nos mais diversos matizes: lírico, satírico, alegórico, religioso e filosófico. É um tea­tro poético que revela o profundo pensamento cristão de um homem conservador e lúcido, de um artista compro­metido, cuja obra é uma arma de combate, de acusação e de moralidade.

Características formais

Gil Vicente afastou-se dos princípios do teatro clás­sico que sua época começou a reabilitar. Não obedece à chamada Lei das Três Unidades, preconizada por Aristóteles, que impunha uma rigorosa concentração dos efeitos emotivos, visando a unificar ao máximo o tom da peça, com a eliminação de personagens e ações que não contribuíssem para o efeito final. As tragédias e comédias clássicas eram submetidas à disciplina das “três unidades“: unidade de ação (a peça deve centrar-se em torno de uma só ação principal, de apenas uma célula dramática), uni­dade de tempo (a ação representada deve restringir sua duração a um dia, ou pouco mais) e unidade de lugar (a ação deve concentrar-se em um único lugar, ou em poucos lugares).

O teatro de Gil Vicente toma o caminho oposto à dis­ciplina clássica. Seus autos e farsas colocam em cena os mais diversos temas, representam inúmeras situações e en­volvem grande número de atores e figurantes. A ação re­presentada dá saltos temporais e são escassas as anotações sobre sua duração. Os lugares são diversos e se justapõem sem qualquer preocupação unitária. Com a maior liberda­de, Gil Vicente constrói as cenas de seu teatro misturando elementos sérios e cômicos, passando de um tom a outro sem qualquer restrição; coloca no palco todas as classes sociais, representadas por meio de elementos externos (ações, gestos, vestuário, instrumentos de trabalho) e, especialmen­te, por meio da linguagem peculiar de cada grupo social ou profissional, alternando o registro “elevado” com o registro “baixo”.

Quanto à ação dramática, há duas modalidades princi­pais no teatro de Gil Vicente:

As peças de ação fragmentária, nas quais pratica­mente não há um enredo, não há uma ação contínua, en­cadeada, com começo, meio e fim. As cenas desenvol­vem-se sem relação de causalidade, constituindo quadros mais ou menos independentes, como sketches, que podem ser representados em qualquer ordem, à maneira do teatro de variedades ou do espetáculo circense. Nas peças de ação fragmentária, quase sempre, a ação é constituída de uma única situação, que vai se repetindo com a variação dos protagonistas ou dos exemplos.

Teatro de Gil Vicente - Auto da Barca do InfernoÉ o caso do Auto da Barca do Inferno, alegoria religiosa em que tipos exemplares da sociedade quinhentista portuguesa são julgados pelo Diabo (“o Arrais do Inferno”) e pelo Anjo (“o Arrais do Céu”) e embarcam no cais da vida eterna, para a danação oiípara a salvação, conforme a vida que levaram. Assim, vão des­filando perante as duas barcas: o fidalgo arrogante e egoís­ta, o onzeneiro (agiota, usurário), o parvo (ingênuo e igno­rante), o sapateiro (ambicioso e desonesto), o frade (de­vasso e libertino), a alcoviteira (caftina, corruptora), o corregedor (magistrado venal e corrupto), o procurador (subserviente e bajulador), o enforcado (criminoso con­denado) e os quatro cavaleiros (que morreram lutando por Cristo, nas Cruzadas). Cada uma dessas personagens dia­loga com o Diabo e com o Anjo, constituindo uma cena, ou um quadro, quase independente, de modo que, se sub­trairmos duas ou três dessas personagens (os mortos em jul­gamento), a peça não perde o sentido, embora possa perder em sua abrangência.

As peças de enredo, nas quais se desenvolve uma história de ação contínua e encadeada, em torno de um epi­sódio extraído da vida real, ou em torno de uma série de episódios envolvendo uma personagem central, ou articu­lando uma ação dramática homogênea e completamente desenvolvida, com um travejamento mais complexo, com começo, meio e fim. Neste último tipo, encontramos algu­mas obras-primas, como o Auto da índia, a Farsa de Inês Pereira e O Velho da Horta.

Por: Miriã Lira

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