Biografias

Comenius

A VIDA DE COMENIUS

O educador checo João Amós Comenius ou Jan Amos Komenský, seu nome original, nasceu em 28 de março de 1592, na cidade de Uherský Brod (ou Nivnitz), na Moravia, região da Europa Central pertencente ao reino da Boêmia (antiga Theco-Eslováquia).

Seus pais Martinho e Ana, também eslavos, eram cristãos adeptos dos irmãos Morávios, uma seita cuja história remota aos tempos de Jan Huss, líder religioso muito popular no século XV, chegando ser reitor da Universidade de Praga.

Essa seita dos irmãos Morávios era muito rígida em doutrina e conduta, e destacava-se pelo extremo apego às Sagradas Escrituras, pela humildade e pela profunda piedade. Adotavam como língua literária o checo em vez do latim.

Comenius fora acusado de não ser, na realidade, um erudito latino; fato é que Comenius não era em nenhum sentido um genuíno humanista, embora tivesse escrito textos para facilitar a aprendizagem da língua latina. Ele não se apaixonou pelo encanto da eloquência ciceroniana e não reverenciou a literatura clássica. Negou completamente a pretensão suprema do Humanismo, o valor moral da literatura pagã.

Alegou que na verdade queria eliminar por completo o fardo dos escritores clássicos, e desejava fazer isso no interesse do bem estar moral e espiritual dos alunos.

Sua infância foi trágica. Aos 12 anos seus pais e suas duas irmãs morreram, tendo ele ficado só e ao abandono. Sendo obrigado a viver com uns tutores rudes, contribuindo para que sua educação infantil fosse tão descurada.

Este episódio ficou indelevelmente marcado em sua personalidade. Levando-o a dispensar uma atenção peculiar à infância, durante toda a sua existência, organizando um sistema próprio de educação infantil; visando à reforma da humanidade.

Aprendeu seus rudimentos de leitura, escrita, cálculo e catecismo, em uma escola dos irmãos Morávios.

Na juventude, seu modelo de escola era simplesmente desestimulador. Possuía em particular, uma seriedade sombria, era desprovida de atrativos, e usavam a prática da famigerada pedagogia da palmatória. Causando-lhe profunda decepção.

Ao concluir seus estudos secundários, optou pela carreira eclesiástica, quando estudou Teologia na faculdade Calvinista de Herborn, na Alemanha.

Aí Comenius adquire uma boa formação cultural, e, ainda como estudante apresenta duas teses de doutorado: “Problemata miscelania” e “Syloge quaestiorum Controversum”, ambas alvo de elogios de seus professores. Época em que ampliou e aprofundou suas convicções religiosas além de haver adquirido uma vasta cultura enciclopédica e desenvolvido o espírito reformador que o acompanharia durante toda a sua vida.

Sua vida está em ativa, Comenius não para. Redige um dicionário de expressões elegantes, transfere-se para Heidelberg a fim de aperfeiçoar seus conhecimentos de astronomia e matemática. Quando retorna para por em prática tudo o que aprendeu.

Passa brevemente em Praga, e chega a Prerov, maior centro da comunidade morávia, estabelecendo-se no magistério.

Cheio de novos conhecimentos, e inconformado com o esquema de educação vigente, procede uma verdadeira reforma em sua escola. Com a aplicação de métodos mais eficientes para o ensino das ciências e das artes.

Passado dois anos como docente, é ordenado pastor dos irmãos Morávios (1616), estabelecendo residência na cidade de Fulnek, onde se casa com Madalena Vizovska. Tendo com ela seus dois primeiros filhos aos 24 anos.

Desempenhando muito bem seu papel como professor e como pastor. É nomeado diretor das escolas da Unidade.

É apontado como adepto da fraternidade Rosacruz, fato que ainda não foi esclarecido devidamente em sua biografia.

Passados muitos anos após a morte de seus pais e suas duas irmãs, ocorre outra tragédia na vida de Comenius. Com a Guerra dos Trinta Anos, conflito religioso desencadeado entre católicos e protestantes na Alemanha, e posteriormente em toda a Europa. Sua família sofre um grande martírio, junto com a população Tcheco-Eslováquia.

Já em 1621, exércitos espanhóis invadem e incendeiam a cidade de Fulnek, onde, Comenius perde todos os seus livros e manuscritos. E como se não bastasse, para completar, perde também sua mulher e seus dois filhos vitimados pela epidemia (peste).

Frente a tantas agruras, não desanima, e recomeça tudo. Produzindo uma série de escritos de cunho religioso a fim de recuperar os ânimos da irmandade. Que perseguidos fogem para a Polônia.

Em Leszno, se casa em segundas núpcias com Dorotéia Cirilo, filha de um influente bispo da Unidade. Reanimado retorna às funções de professor e pastor.

Sua fama chega à Inglaterra, e convidado vai à Londres, sendo recebido com todas as honras. Aumenta sua fama e ultrapassa as fronteiras britânicas. É convidado  inclusive para assumir a reitoria da já famosa Universidade de Harvard. Por razões políticas não aceita.

Passa por outros países, fixando-se novamente em Leszno. Na Suécia Comenius encontra-se com Descartes, no castelo de Endegeest, nas cercanias de Leide. Diz-se que o pensador francês devia simpatizar com o mestre morávio, porque entre eles havia muitos pontos em comum.

Mas o destino realmente conspirava contra Comenius. E veio outra tragédia. Outro incêndio destruiu sua casa e, mais uma vez perde sua valiosa biblioteca.

Em 1648, em Leszno, sua mulher Dorotéia morre, deixando cinco filhos, dois crescidos e três pequenos.

Pobre e doente. Vítima da incompreensão da comunidade busca asilo em diversas cidades alemãs, mas terminou indo para Holanda, onde passara os derradeiros anos de sua vida.

Em 1649, Comenius casou em terceira núpcias, em Johana Gajusová.

Instala-se em Amsterdã, e reúne forças para prosseguir seu trabalho de educador e reformador social. E ele cresce outra vez.

As autoridades holandesas, conscientes do valor de Comenius, propõem ao hóspede a publicação de todas as suas obras pedagógicas, muitas das quais já eram bastante conhecidas no país.

Feliz, o grande sábio morávio vive na Holanda, experimentando uma nova e reconfortante vida. E na ultima fase de sua vida dedica-se a ser um apologista da paz, propugnando pela fraternidade entre os povos e as igrejas.

Sua vida chega, então, ao fim. Em 1670, com quase oitenta anos, adoece. E antes de morrer no dia 15 de novembro, ainda encontra fôlego para escrever um resumo de seus princípios pedagógicos.

Comenius morre cercado por familiares e amigos, e é sepultado numa pequena igreja em Naarden, onde fora construído seu mausoléu.

Em 1956 a Conferencia Internacional da UNESCO realizada em Nova Delhi delibera a publicação das obras de Comenius e o aponta como um dos primeiros propagadores das ideias que inspiram a fundação da UNESCO.

Comenius foi muito versátil em matéria de assuntos. E podem ser classificadas em três categorias:

a) as que tratam exclusivamente de princípios educacionais;

b) outras que tratam de recursos auxiliares para a instrução na sala de aula; e

c) as obras mistas, nas quais se incluem as religiosas, como sermões, histórias eclesiásticas, hinários, catecismos, traduções e trabalhos proféticos.

Todos os pesquisadores são unânimes em apontar a Didática Magna, ou A grande Didática, como sendo sua obra-prima e sua maior contribuição para o pensamento educacional, e é sem dúvida o primeiro tratado sistemático de pedagogia, de didática, e até de sociologia escolar.

Como que compendiando todo o ideário pedagógico de Comenius, foi sobre tudo ela que lhe mereceu ser considerado o “Galileu da Educação”. Tamanha obra inicia-se com uma saudação aos leitores, seguida de um apelo aos responsáveis pelas coisas humanas, onde se lê: “se, portanto, queremos igrejas e Estados bem ordenados e florescentes, e boas administrações, primeiro que tudo ordenemos as escolas e façamo-las florescer, a fim de que sejam verdadeiras e vivas oficinas de homens, e viveiros eclesiásticos, políticos e econômicos. Assim, facilmente atingiremos nosso objetivo; doutro modo nunca o atingiremos.” Comenius. Mostra a seguir que a arte didática é útil aos pais, aos professores, aos estudantes, as escolas, aos Estados, a Igreja e até no Céu.

Entre tantas outras obras Comenius escreveu:

  • – O labirinto do mundo. 1623
  • – Didática checa. 1627 – Guia da escola materna. 1630
  • – Porta aberta das línguas. 1631
  • – Didática Magna (versão latina da Didática checa). 1631
  • – Novíssimo método das línguas. 1647
  • – O mundo ilustrado. 1651
  • – Opera didática omnia ab anno 1627 ad 1657
  • – O anjo da paz. 1667
  • – A única coisa necessária. 1668

A OBRA PRIMA DE COMENIUS ANALISADA

De fronte a questões políticas, muitos países passaram por momentos difíceis no século XVII, cujas consequências foram bastante danosas aos interesses educacionais.

Tal situação, comum em outros países europeus, gerou um enorme desestímulo ao estudo por parte dos filhos dos nobres, chegando ao cúmulo de um deles dizer, em franco estado de desespero:

“Juro que antes de fazer de meu filho um mestre-escola, o enforcaria. (…) Quanto ao saber que se busca nos livros deve-se deixar aos vadios.”

Para compreender o século XVII e todas as suas potencialidades e contradições é útil e oportuno partir de Comenius e do seu modelo de educação universal que veio mediar reciprocamente ciência, história e utopia sobre um pensamento fortemente original e, ao mesmo tempo, rico de passado e carregando de futuro.

Em decorrência do humanismo, que significava, praticamente uma saída as possibilidades humanas para solução dos problemas do homem e uma escapada ou recusa para buscar essa solução milagrosa, ou seja, fora da natureza, o método de dedução experimental surge como recurso para, através da compreensão do relacionamento das coisas e dos agentes naturais, tentar dirigir a natureza em seu próprio benefício. Utilizaram-se da física, a química, a mecânica celeste, a medicina, a geometria.

Francis Bacon, conseguiu difundir as bases de um grande e profundo movimento de ideias e práticas, imprimindo uma orientação menos formalista e mais concreta e humana ao pensamento pedagógico e aos processos de instrução escolar. Não foi o criador do método científico, mais o soube reformular e divulgar. Estimulando a inclusão do conhecimento científico nos programas escolares, acompanhado de facilidades de pesquisa e prática.

Abriu as portas para Wolfgang Ratke. Onde posteriormente foram reformulados de modo sistemático as varias experiências, servindo como embrião de quase toda a teoria educacional dos séculos seguintes.

Se de um lado Comenius influenciou decisivamente a pedagogia posterior, vale lembrar que de outro lado, ele extraiu uma grande contribuição encontrada nos trabalhos de Locke. A Didática de Comenius talvez não tivesse encontrado a repercussão que conseguiu; isso se deu devido a complementação recebida que a tornou viável.

“Percebendo que a educação, menos ou mais do que o armazenamento de informações e conhecimentos, seria a aquisição de equipamentos de hábitos, conforme a seguinte ordem de valores: saúde, virtude, sabedoria, serenidade e aprendizagem mental.”

UMA SÍNTESE DO MÉTODO COMENIANO QUE CONSISTE NOS SEGUINTES PRINCÍPIOS:

“PRIMEIRO PRINCÍPIO”

A natureza aguarda o momento propício

Por exemplo, o pássaro não inicia a reprodução no inverno, quando tudo está frio e rígido, nem no verão, quando tudo está abrasado e extenuado pelo calor, nem no outono, quando a vitalidade das coisas decresce com o sol e predomina o frio, que é inimigo das coisas novas, mas a inicia na primavera, quando o sol dá vida e vigor a todas as coisas. (Op. Cit., 147)

Depois cita o exemplo do jardineiro que fica atento para que tudo aconteça no tempo devido e por isso não semeia durante o inverno(porque a linfa não está aderente à raiz), nem no verão (porque a linfa já está espalhada pelos ramos), nem no outono (porque a linfa se está retirando pela raiz), mas sim na primavera, quando o humor começa a difundir-se a partir da raiz e a alimentar as partes mais altas da planta. Cita outros exemplos, como sempre retirados da natureza para depois criticar que as escolas contrariam os princípios naturais pelo menos de dois modos:

1. Não aproveitando o tempo oportuno para exercitar os engenhos (inteligências).

2. Não organizando cuidadosamente os exercícios de modo que tudo avance gradualmente e sem erros”. (Op. Cit., 148)

Depois comenta que a criança não pode ser instruída enquanto é pequena demais, porque a raiz da inteligência ainda está escondida; é tardio demais instruir o homem na velhice, porque a inteligência e a memória estão falhas; e conclui que a formação do homem deve ocorrer durante a idade primaveril (ou seja, na infância, símbolo de primavera), que as horas matinais são as mais propícias aos estudos, e compara que a manhã corresponde à primavera; o meio-dia, ao verão; a tarde ao outono, a noite, ao inverno, e finalmente diz: “Tudo o que será aprendido deve ser disposto segundo a idade, para que nunca se ensine nada que não possa ser compreendido”. (Op. Cit., 148)

“SEGUNDO PRINCÍPIO”

A natureza prepara a matéria antes de começar a introduzir-lhe a forma

Por exemplo, para produzir uma criatura semelhante a si, o pássaro primeiramente forma a semente com uma gota de seu sangue; depois, prepara o ninho para chocar os ovos e, finalmente, chocando-os com seu próprio calor, forma a criatura e a faz sair do ovo. (Op. Cit., 149)

Citando outros exemplos, como o do arquiteto experiente que antes de começar a construir um edifício, junta primeiramente o material de construção, e o pintor que antes prepara a tela (doravante serão citados apenas um exemplo para cada Princípio e será sempre o do pássaro), ele diz que as escolas contrariam esse princípio;

Porque não cuidam previamente de Ter os vários instrumentos, livros, quadros, exemplos e modelos, sempre prontos para o uso, mas só quando há necessidade é que isto ou aquilo é procurado, feito, ditado ou transcrito; e quando isso é feito por um instrutor inexperiente ou negligente (e essa raça é sempre numerosa), os resultados são escassos; é como se um médico, precisando administrar um remédio, saísse pelos campos e bosques á cata de ervas e raízes, pondo-se a cozê-las e destilá-las ao passo que seria mais prático Ter os remédios já prontos para todos os casos.

Em segundo lugar, porque nos próprios livros escolares não é observada a ordem natural, segundo a qual a matéria precede e a forma lhe sucede. (Op. Cit., 149-150)

Então ele critica as escolas afirmando que elas ensinam as palavras antes das coisas e diz que para corrigir o método desde os fundamentos é preciso:

1. Ter prontos os livros e todos os outros instrumentos didáticos.

2. Que o intelecto seja formado antes da língua.

Que não se aprenda nenhuma língua a partir da gramática, mas apenas a partir de autores apropriados.

As disciplinas reais devem preceder as lógicas.

Os exemplos devem preceder as regras”. (Op. Cit., 151)

“TERCEIRO PRINCIPIO”

Ao obrar, a natureza toma um indivíduo apto e prepara-o antes  oportunamente.

Por exemplo: o pássaro não põe uma coisa qualquer no ninho, para chocar, mas um objeto do qual possa nascer um passarinho, ou seja, o ovo. Se junto dele alguém puser um seixo ou qualquer outra coisa, ele o rejeitará como inútil. (Op. Cit., 151)

Como sempre, Comenius cita outros exemplos, todos com a mesma linha de raciocínio, para depois criticar as escolas afirmando que elas contrariam esse princípio não tanto por aceitarem crianças cretinas ou tolas (pois todas devem ser aceitas), mas porque “não se atribui às escolas a tarefa de proceder de tal modo que todos os que devam ser formados homens não saiam delas antes que a educação se complete”.(Op. Cit., 152).

Ele propõe:

· Quem ingressar na escola deve ser perseverante.

· Para qualquer estudo encetado, é preciso predispor as mentes dos alunos.

· Devem ser afastados dos estudantes todos os tipos de   obstáculos”. (Op. Cit., 153)

 “QUARTO PRINCÍPIO”

Em suas obras, a natureza não procede confusamente, mas de modo claro.

Por exemplo: Ao formar um passarinho, a natureza em dado momento constitui os ossos, os nervos e as veias, e em outro fortalece-me a carne, recobre-o de penas, para em seguida ensiná-lo a voar”. (Op. Cit., 154)

Mas nas escolas, segundo Comenius, “há uma grande confusão que deriva de se querer abarrotar as mentes dos alunos com muitos conhecimentos ao mesmo tempo”. (Op. Cit., 154)

Sua proposta: Que nas escolas também os alunos se dediquem em dado período a uma única matéria de estudo.

Na verdade, hoje é muito comum esse tipo de estudo nos cursos modulares ministrados nas faculdades.

“QUINTO PRINCÍPIO”

A natureza começa todas as operações pelas partes mais internas.

Por exemplo: a natureza não forma antes as unhas do passarinho, ou as penas, ou a pele, mas as vísceras; as coisas externas vêm depois, no momento oportuno. (Op. Cit., 155)

Depois de citar outros exemplos, como sempre faz para ilustrar e fundamentar os seus Princípios Educacionais, Comenius diz:

“Portanto, erram os instrutores que querem levar a cabo a formação da juventude ditando muitas coisas e obrigando decorá-las sem uma cuidadosa explicação. Erram também os que querem explicar mas não conhecem o método, não sabem de que modo abrir lentamente a raiz para nela inserir o enxerto das ciências. Desse modo estragam os alunos como alguém que, para cortar uma planta, usasse um bastão ou um bate-estacas em vez de uma faca. Por isso:

Antes se forme o entendimento das coisas, depois a memória e, em terceiro lugar, a língua a as mãos.

Os docentes devem procurar todos os caminhos para abrir o intelecto e usá-los com sabedoria”. (Op. Cit., 156)

 “SEXTO PRINCÍPIO”

A natureza inicia todas as suas formações pelas coisas mais gerais e acaba pelas mais particulares.

Exemplo: para produzir um pássaro a partir de um ovo, não delineia nem forma de início a cabeça, os olhos, as penas, as unhas, mas aquece toda a massa do ovo e estende veias por toda graças ao movimento produzido pelo calor, de tal modo que o passarinho fique totalmente delineado (ou seja, a cabeça, as asas, as patas em embrião) e por fim as partes se desenvolvem gradualmente, até atingirem a perfeição”. (Op. Cit., 156-157)

Comenius critica as escolas dizendo que o ensino das ciências será mal conduzido se for particularizado, se antes forem propostas as linhas mais simples e gerais de todo ensinamento; e que nem é possível instruir ninguém perfeitamente numa única ciência sem relacioná-las com as outras.

Será que não estaria sendo lançado aí o principio da interdisciplinaridade, hoje tão decantado pelos Planos Curriculares Nacionais?

Fundamentalmente Comenius propõem:

“Que qualquer língua, ciência ou arte seja ensinada no início apenas por meio de rudimentos simples, de modo que delas se tenha uma ideia geral para depois se aprimorar o estudo por meio de regras e exemplos, e, em terceiro lugar, por meio de sistemas completos, incluindo as irregularidades; finalmente, se necessário, que sejam incluídos comentários. Na verdade, quem compreende uma coisa desde seus fundamentos não precisa de comentários, aliás pouco depois poderá fazê-los por conta própria”. (Op. Cit., 158-159)

 “SÉTIMO PRINCÍPIO”

A natureza não procede por saltos, mas gradualmente.

A formação de uma passarinho procede por graus, que não podem ser saltadas nem propostos, até que o passarinho, quebrando a casca do ovo, dele saia. A seguir, a mãe não lhe ordena logo que voe ou que saia em busca de alimento (pois ele não seria capaz disso), mas alimenta-o e, aquecendo-o com o seu próprio calor, ajuda o crescimento das penas. Depois de nascidas todas as penas, não o empurra logo para fora do ninho para que voe, mas leva-o a exercitar-se gradualmente, e no início ensina-o abrir as asas no próprio ninho, depois a movimentar-se elevando-se acima do ninho; a seguir, permite que ele tente o voo fora do ninho, mas sempre nas proximidades, e só depois deixa que voe de galho em galho, de árvore em árvore, de altura: assim, finalmente, pode confiá-lo com segurança ao céu aberto. Eis que todas essas ações exigem o movimento oportuno, e não só o momento, mas os graus, e não só os graus, mas uma série imutáveis de graus. (Op. Cit.,159-160)

Depois de citar outros exemplos, Comenius argumenta:

“Portanto, é um absurdo que os mestres não distribuam os estudos, para si e para os alunos, de tal modo que não só uns se sucedam naturalmente aos outros, mas que cada matéria seja completada em dado limite de tempo. Se não se estabelecem muito bem os fins, os meios para atingir esses fins e a ordem dos meios, será fácil esquecer ou inverter alguma coisa, e todo o estudo de algum modo será prejudicado.

Conclui-se, pois, que:

Todas as matérias de estudo sejam divididas em aulas, de tal modo que as primeiras sempre aplanem e iluminem o caminho das seguintes.

O tempo deve ser bem distribuído para que, a cada ano, mês, dia, hora, seja atribuída uma tarefa particular.

A medida do tempo e dos trabalhos deve ser rigidamente observada, para que nada seja esquecido ou invertido”.      (Op. Cit., 160)

 “OITAVO PRINCÍPIO”

Depois de iniciar uma obra, a natureza não a interrompe, mas conclui.

Ainda como sempre, usando em primeiro lugar o exemplo do pássaro, diz Comenius:

“O pássaro que, por natural instinto, começou a chocar os ovos não para enquanto eles se abrem: se parasse, nem que por algumas horas, logo o feto morreria de frio. Depois que os passarinhos nascem, não para de aquecê-los até que, robustecidos e cobertos de penas, eles possam se expor ao tempo.” (Op. Cit., 161)

Dado o exemplo da natureza, ele argumenta: “Está claro, portanto, que seria prejudicial mandar as crianças para a escola a intervalos de meses e de anos, distraindo-as com outras preocupações. O preceptor também erra se inicia, com o aluno, ora uma coisa, ora outra, sem nunca se aprofundar em nada com seriedade. Também erra se a cada hora não estabelece nem leva a termo nada de definitivo, de tal modo que o progresso seja cada vez mais notável. Onde falta esse calor tudo se esfria; não por acaso se diz que o ferro deve ser batido enquanto está quente; se esfriar, batê-lo com o martelo será em vão, sendo necessário levá-lo de volta ao fogo com prejuízo inevitável, seja de tempo, seja de ferro. Porque a cada vez que se volta ao fogo, perde-se um pouco do material”.

E em seguida conclui:

Por isso:

Quem se dedica aos estudos deve frequentar a escola até se tornar homem instruído, dotado de moral e religioso.

A escola deve ser um lugar tranquilo, distante da turba e das distrações.

É preciso fazer tudo o que deve ser feito, sem interrupções.

Não se deve permitir que ninguém se distraia ou se afaste (por nenhum motivo)”. (Op. Cit., 161-162)

Com este princípio, estimulando a presença do aluno na escola até a sua completa formação, Comenius estava condenando a evasão, hoje uma grande preocupação do governo.

 “NONO PRINCÍPIO”

A natureza está sempre atenta para evitar as coisas contrárias e nocivas.

Ao aquecer os ovos enquanto choca, o pássaro os defende do vento forte, da chuva e do granizo, expulsando cobras, aves de rapina e outros perigos. (…) Portanto, é pouco prudente apresentar aos jovens, desde o início, controvérsias sobre algum assunto, ou seja, pôr em dúvida coisas que ainda precisam ser aprendidas. Essa atitude porventura não equivale a sacudir com violência uma planta que está assentando raízes?

Seja, pois, deliberado que:

Não se deve dar aos jovens nenhum livro, a não ser os de sua classe.

Esses livros devem ser tão bem-feitos que possam merecidamente ser definidos como inspiradores de sabedoria, virtude, piedade.

Não deve ser toleradas as más amizades nas escolas ou nas suas imediações.

Se tudo isso for escrupulosamente observado, é quase impossível que as escolas não atinjam seu fim”. (Op. Cit., 162-163)

O projeto pedagógico de Comenius não se esgota aqui. Muita coisa está contida nos seus ensinamentos transcritos noutra parte deste trabalho e outras serão vistas conforme a ótica dos estudiosos cujas obras sobre Comenius foram selecionadas tendo em vista oferecer uma visão mais ampla e diversificada do estudo.

Assim, na ótica de Fargnoli (2000:10-11) “a didática de Comenius se assentava nos seguintes princípios:

A finalidade da educação é conduzir à felicidade eterna com Deus, pois é uma força poderosa de regeneração da vida humana. Todos os homens merecem a sabedoria, a moralidade e a religião, porque todos, ao realizarem sua própria natureza, realizam os desígnios de Deus. Portanto, a educação é um direito natural de todos.

Por ser parte da natureza, o homem deve ser educado de acordo com o seu desenvolvimento natural, isto é, de acordo com as características e os métodos de ensino correspondentes, de acordo com a ordem natural das coisas.

A assimilação dos conhecimentos não se dá instantaneamente, como se o aluno registrasse de forma mecânica na sua mente a informação do professor, como o reflexo num espelho. O ensino, ao invés disso, tem um papel decisivo à percepção sensorial das coisas. Os conhecimentos devem ser adquiridos a partir da observação das coisas e dos fen6omenos, utilizando e desenvolvendo sistematicamente os órgãos dos sentidos.

O método indutivo consiste, assim, da observação direta, pelos órgãos dos sentidos, das coisas, para o registro das impressões na mente do aluno. Primeiramente as coisas, depois as palavras. O planejamento de ensino deve obedecer ao curso da natureza infantil; por isso as coisas devem ser ensinadas uma de cada vez. Não se deve ensinar nada que a criança não possa compreender. Portanto, deve-se partir do conhecido para o desconhecido”.

Discorrendo sobre o modelo educacional comeniano, Gambi (1999:290) esclarece que Comenius “avança uma proposta de organização escolar que prevê quatro graus sucessivos, para cada um dos quais delineia objetivos, os conteúdos e os métodos, com uma meticulosidade e uma minúcia por vezes excessivas, que desemboca na repetitividade e no pedantismo. As quatro escolas são:

A escola maternal para a infância, a mais importante, a que prepara “o terreno da inteligência” e à qual está ligada “toda a esperança da reforma universal das coisas”:

A escola nacional ou vernácula para a meninice, cuja finalidade “é fazer adquirir prontidão e esbelteza para o corpo, para os sentidos, para a inteligência”. É articulada em seis classes nas quais se aprendem a leitura, a escrita, a matemática, mas também os primeiros preceitos morais e os rudimentos da fé;

A escola de latim ou ginásio para a adolescência, cujo objetivo é “colocar em forma a floresta de noções recolhidas pelos sentidos para um uso mais claro do raciocínio”. É chamada de latim porque educa para a elegância expressiva e para a leitura pessoal dos textos;

A academia para a juventude, cuja finalidade é “a formação da luz harmônica, plena, universal, que congrega sapiência, virtude e fé”. É chamada academia porque se coloca como “conselho” de sábios e está situada em lugar apartado e tranquilo”.

E continua Gambi (1999:292) “ao lado das quatro escolas já apresentadas na Didacta Magna ele prevê outras quatro:

A escola pré-natal ou do seio materno: tem por objetivo fornecer aos pais conselhos úteis no plano moral e higiênico-sanitário;

A escola da virilidade: destina-se à idade madura e tem a finalidade de orientar a “práxis” da vida do indivíduo através do temor de Deus e o empenho profissional;

A escola da velhice: é de preparação para a morte e tem o objetivo de “conseguir finalmente que toda a vida seja boa, enquanto boa será a sua conclusão;

A escola da morte: “não se destina apenas aos velhos, mas a todas as idades”.

Comenius não se descuidou do ensino das línguas ao qual deu atenção especial. Covello (1991:50) cita as oito regras básicas adotadas por Comenius para o ensino da língua:

  • 1a. Aprenda-se cada língua em separado.
  • 2a. Ao estudo de cada língua, consagra-se um período determinado de tempo.
  • 3a. Todas as línguas devem aprender-se mais com a prática do que por meio de regras.
  • 4a.Todavia, as regras devem ajudar e confirmar a prática.
  • 5a. As regras das línguas sejam gramaticais, e não filosóficas.
  • 6a. A norma para escrever as regras de uma nova língua seja uma língua já conhecida, para que se mostre apenas a diferença daquela relativamente a esta.
  • 7a. Os primeiros exercícios de uma nova língua sejam acerca de matéria já conhecida.
  • 8a. Todas as línguas podem, portanto, aprender-se por um só e mesmo método.”

CONCLUSÃO

Isso é fato e todos nós sabemos, a didática sempre existiu na história dos homens, porque sempre se ensinou e sempre se aprendeu. Em COMENIUS, todavia, ela adquire dimensões peculiares que a diferenciam de todas as outras formulações anteriores ou contemporâneas, como, por exemplo, as de Ratke ou da Ratio Studiorum dos Jesuítas.

Os elementos essenciais de sua arte de ensinar e de sua arte de educar são uma peculiar e coerente apreensão das contradições e das novas necessidades humanas, que estavam surgindo em função das transformações profundas pelas quais passava a sociedade. A arte de ensinar, como núcleo do pensamento didático-pedagógico Comenius, manifesta sua radicalidade não apenas quanto a sua extensão em termos de conteúdo e de universalidade das pessoas a abranger, mas também em relação à profundidade dos conhecimentos de que trata. A intenção comeniana não é somente ensinar tudo a todos totalmente, mas também que todos aprendam tudo, totalmente. Com efeito, sua arte, num processo de separação por incorporação, parte do ensino para chegar a um estágio superior, a aprendizagem, abrangendo os dois polos opostos numa única globalidade.

A didática comeniana incorpora coerentemente em sua estruturação o modelo dos artesãos, mas também dos manufatureiros que, mais expressivamente, traduzem as transformações e os avanços da ciência e da tecnologia que estavam em curso no início da Idade Moderna. Por isso, o relógio e a tipografia tornaram-se exemplos da arte de ensinar. Todavia, o modelo mais perfeito que Comenius encontrou para moldar todos os passos de sua didática é a natureza. Ela torna-se o guia ideal a ser reproduzido por todo aquele que se propõe a ensinar. Mas como o ensino não é algo natural, e sim artificial, só pode ser ministrado por uma arte que repita a natureza. Para Comenius, porém, toda arte imita essencialmente a natureza, não havendo, portanto, nenhuma contradição em tomá-la como modelo que se concretiza por meio de uma arte. Tendo, pois, como ponto de partida e fundamento imediato, a natureza, mas também o método da ciência, a força das ideias dos interlocutores e o método de trabalho.

Para compreender o século e todas as potencialidades e contradições é oportuno partir de Comenius e do seu modelo de educação universal que veio mediar reciprocamente ciência, história e utopia sobre um pensamentofortemente original e, ao mesmo tempo, rico de passado e carregado de futuro.

Se com Montaigne se teoriza um modelo de educação individual e prática, baseado sobre respeito da natureza e da psicologia do educando, com o século XVII afirma-se um modelo de pedagogia explicitadamente epistemológico e socialmente engajado, representando, especialmente na área norte-europeia, onde mais se observam os ideais culturais e políticos da idade Média, sobretudo por Comenius e seus colaboradores, os quais elaboram uma ideia de educação universal nutrida por fortes ideais filosóficos e políticos-religiosos. Estes remetem explicitamente às posições dos utopistas da época renascentista, sobretudo no que tange aos ideais de justiça e de pacificação universal, além de reforma social, política e intelectual. Quem, porém, desenvolve estas posições em chave declaradamente pedagógica é, em primeiro lugar, Comenius, que afirma a universalidade da educação contra as restrições devidas a tradições e a interesses de grupos e de classes, e a sua centralidade na vida do homem e da sociedade. Com ele se delineiam pela primeira vez de maneira orgânica e sistemática alguns problemas já relevantes da pedagogia: desde o projeto antropológico-social que deve guiar o mestre até os aspectos gerais e específicos da didática, para chegar às estratégias educativas referentes às diversas orientações da instrução.

É só a partir do fim do século que se assiste, depois de mais de um século de esquecimento, a uma retomada de interesses pela figura e pela obra de Comenius. Hoje, de Comenius tende-se a valorizar o forte engajamento religioso e civil orientado pra uma radical reforma da sociedade e substanciado por um conceito plurilateral de formação.

No plano estritamente pedagógico, são hoje considerados motivos basilares do seu pensamento o estreito vínculo entre os problemas da educação e as problemáticas gerais do homem, a centralidade da educação no quadro do desenvolvimento social, a existência de um método universal de ensino baseado em processos harmônicos da natureza, o conceito de uma instrução para toda a vida e aberta a todos, a concepção unitária do saber e o empenho por uma educação para a paz e a concórdia entre os povos. Todos esses motivos fazem de Comenius um grande inovador e antecipador de problemas e soluções que são próprios da Modernidade, mas isso não pode levar a separá-lo da cultura de seu tempo.

A sua grandeza se manifesta também no fato de ser um espírito luminoso numa época trágica. A concepção pedagógica de Comenius baseia-se num profundo ideal religioso que concebe o homem e a natureza como manifestações de um preciso desígnio divino. Para Comenius, Deus está no centro do mundo e da própria vida do homem. Toda a construção pedagógica de Comenius é, de fato, caracterizada por uma forte tensão mística que sublinha seu caráter ético-religioso e a decidida conotação utópica: a educação neste quadro é a criação de um modelo universal de “homem virtuoso”, ao qual é confiada a reforma geral da sociedade e dos costumes. Sobre as bases desta concepção de homem, Comenius edifica o seu projeto educativo; isso faz dele o primeiro verdadeiro sistematizador do discurso pedagógico, aquele que relaciona organicamente os aspectos técnicos da formação como abrangente reflexão sobre o homem.

BIBLIOGRAFIA

GASPARIN, João Luiz. Comenius ou da arte de ensinar tudo a todos. São Paulo: Papirus, 1994.

COVELLO, Sérgio Carlos. Comenius, a construção da pedagogia. São Paulo: SEJAC, 1991.

RIBOULET, L (Tradução de Justino Mendes). História da Pedagogia.São Paulo: F.T.D., 1951.

WALKER, Daniel. Comenius, o criador da didática moderna. Juazeiro do Norte: HB Editora, 2001.

COMENIUS, João Amós. Didáctica Magna. Fundação Caloustre Gulbenkian. 4ª ed. Praga, 1957.

Por: Alinne Mayte Terhorst

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