Direito

Direito Constitucional

A palavra “constituição”, que se origina do verbo latino “constituere”, é plurívoca.  Cada um dos sentidos merece ser estudado para que assim se compreenda de maneira ampla o fenômeno constitucional.

Uadi Lammêgo Bulos, ancorado nos ensinamentos de Howard Lee McBain, adota o entendimento de que a constituição é um “organismo vivo”, cujo escopo é delimitar a organização estrutural do Estado, a forma de governo o modo de aquisição e exercício do poder, através de um conjunto de normas jurídicas, escritas ou costumeiras que estatuem direitos, prerrogativas, garantias, competências, deveres e encargos.

As constituições podem ser compreendidas como lídimos “organismos vivos”, pois consignam verdadeiros documentos abertos no tempo, em íntimo vínculo dialético com o meio circundante, com as forças presentes na sociedade, como as crenças, as convicções, as aspirações, os anseios populares, a burocracia etc.

À luz disso, a constituição é um “organismo vivo”, porque no seu preparo, no ato mesmo da sua criação, é incumbência do legislador prever possíveis modificações futuras, o que exige conferir às normas elasticidade, abrindo perspectivas para a recepção dos fatos novos, surgidos após o advento do instrumento basilar.

Pelo exame da constituição, é possível detectar, além dos direitos e deveres, competências e garantias, o perfil do Estado, os elementos que o compõem, a principiologia que o rege.

Daí dizer-se que a constituição é a particular maneira de ser do Estado.

O nascimento da organização estatal tem lugar no preciso momento em que se edita a sua constituição, provenha ela de revolução ou de assembleia popular.  As constituições que se seguem fundam novas ordens jurídicas, diversas das anteriores.  Nesse caso, o Estado, do ponto de vista histórico e geográfico pode ser o mesmo. Porém, da ótica exclusivamente jurídica, não, pois, a cada manifestação constituinte, emissora de atos constitucionais, se inaugura um novo Estado.

Ferdinand Lassale salientou o caráter sociológico de uma constituição, a qual se apoia nos fatores reais do poder.  Esses fatores reais do poder seriam a força ativa que corresponde a todas as lei da sociedade, e uma constituição que não correspondesse a tais fatores reais não passaria de uma simples folha de papel, pois uma constituição duradoura e boa é a que corresponde à constituição real, isto é, àquela que tem suas raízes nos fatores de poder predominantes nesse País.

Hans Kelsen, de outro ângulo, examinou a constituição nos sentidos lógico-jurídico e jurídico-positivo. A constituição é a norma fundamental hipotética, que tem a função primordial de servir de fundamento de validade do ordenamento jurídico, outorgando-lhe sistematicidade.

Kelsen distinguiu os sentidos formal e material de uma constituição. Ao fazê-lo, sentenciou que a constituição em sentido formal é certo documento solene, traduzido num conjunto de normas jurídicas que só podem ser modificadas mediante a observância de prescrições especiais, que têm por objetivo dificultar o processo reformador. Já a constituição em sentido material é formada por preceitos que regulam a criação de normas jurídicas gerais.

Carl Schmitt enuncia o conceito político de constituição. Demarcava que a constituição é fruto de uma decisão política fundamental, é dizer, uma decisão de conjunto sobre o modo e a forma da unidade política. O conteúdo de uma constituição refletiria a forma de Estado, a de governo, os direitos fundamentais, os órgãos de poder, porquanto promana de uma decisão política fundamental. Daí, exsurge a noção de matéria constitucional.

1. Outras concepções de constituição:

a) jusnaturalistas: a constituição concebida consoante princípios de direito natural, principalmente no que diz respeito aos direitos fundamentais do ser humano (Víctor Cathrein);

b) positivistas: a constituição como complexo normativo emanado do poder estatal, sem considerar qualquer elemento axiológico em sua formação (Laband, Jellinek, Carré de Malberg e Kelsen);

c) historicistas: a constituição como derivação do processo histórico, que ao reger a vida de um povo considera a tradição, os costumes, os folkways e mores, a religião, a geografia, as relações políticas e econômicas (Burke, De Maistre, Gierke);

d) marxistas: a constituição como produto da supra-estrutura ideológica, condicionada pela infra-estrutura econômica. É o caso da “constituição-balanço”, que descreve e registra a organização política estabelecida, é dizer, os estágios das relações de poder;

e) culturalistas: a constituição como fato cultural, desembocando na filosofia dos valores (Meirelles Teixeira, Maunz, Otto Bachof);

f) estruturalistas: a constituição como resultado das estruturas sociais, equilibradora das relações políticas e da sua transformação (José Afonso da Silva, Spagna Musso)

2. Classificações

  • Quanto ao conteúdo:

a) materiais: a constituição significa o complexo de normas escritas ou costumeiras que intergaram o ordenamento constitucional do Estado, delineando a sua estruturação orgânica e garantindo direitos fundamentais;

b) formais: a constituição é um documento escrito e solene, apenas alterável por meio de formalidades estabelecidas nela mesma.

  • Quanto à forma:

a) escritas: aquelas cujas suas normas vêm prescritas de modo sistemático e codificado através da grafia. Estabelecem-se por um órgão constituinte, que estipula e esquematiza o funcionamento dos poderes constituídos, o modo de exercício e os limites de atuação deles;

b) não-escritas: são aquelas cujas normas não vêm disciplinadas de modo único, sistemático e codificado, num documento técnico e solene. Formam-se ao lado dos costumes, das praxes, das convenções e até da reiteração uniforme dos julgados.

  • Quanto à origem:

a) promulgadas: são as constituições democráticas ou populares, que se originam através da participação popular. O povo, na qualidade de eleitor, escolhe livremente, através do voto, os representantes que irão integrar a Assembleia Constituinte, destinada a elaborar e estabelecer, sem interferência dos outros Poderes, normas constitucionais;

b) outorgadas: são as que derivam de uma concessão do governante, seja ele um rei, imperador, presidente, representante de uma junta governativa, ditador, líder carismático (na concepção weberiana), pessoas que titularizam o poder constituinte originário, em um contexto não-democrático.

  • Quanto ao processo de mudança:

a) rígidas: são aquelas somente suscetíveis de mudança por intermédio de um processo solene e complicado, bem mais específico e rigoroso do que aquele utilizado para modificar as leis em geral;

b) flexíveis: a cada momento, é capaz de ser modificada, expandida, contraída, sem processo formal complexo, da mesma forma que as leis em geral;

c) semi-rígidas: possuem uma parte rígida e outra flexível, como a Constituição Imperial de 1824.

  • Quanto à extensão:

a) sintéticas: são constituições compactas, em que a matéria constitucional vem predisposta de modo resumido;

b) analíticas: são amplas e minuciosas, cujos artigos, desdobrados em incisos e alíneas, se ordenam de modo reiterado em várias partes do texto.

– A Constituição Federal de 1988 é democrática, escrita, rígida e analítica. É ainda dirigente, pois funciona como “estatuto jurídico do político”, como plano global normativo de todo o Estado e de toda sociedade, que estabelece programas, definindo fins de ação futura.

3. Teoria do poder constituinte

Como afirma Paulo Bonavides, a teoria do poder constituinte é, antes de tudo, a teoria da legitimidade do poder.

Na verdade, sempre existiu e sempre existirá o poder constituinte para criar, estabelecer e estruturar a constituição, mas, como doutrina, ele surge com o desenvolvimento das revoluções burguesas, no período do movimento político-cultural do constitucionalismo, com destaque para as ideias do abade Emmanuel Joseph Sieyès, autor do clássico panfleto “Que é o Terceiro Estado?”, que expressava as reivindicações da burguesia contra o privilégio e o absolutismo.

Pela manifestação originária constituinte originária, desencadeia-se a etapa de criação ou elaboração constitucional, a qual requer trabalho mais apurado e cuidadoso, inspirado pela filosofia e sociologia, do que aquele destinado à feitura das leis comuns, haja vista a índole do poder constituinte originário – elevada competência autoorganizadora do Estado – ilimitado pelo direito positivo interno, situando-se fora do alcance do processo legislativo.

Todavia, há na doutrina o reconhecimento da existência de limitações extrajurídicas ou metajurídicas, impostas pelas estruturas políticas, sociais, econômicas, culturais e ideológicas dominantes na sociedade, ao próprio poder constituinte originário, razão pela qual já não se lhe pode atestar o caráter absoluto.

O titular do poder constituinte originário varia de acordo com a teoria, podendo ser, p. ex., o rei, a nação ou o povo (teoria democrática), que o exerce através de representantes.

O denominado poder constituinte derivado ou, simplesmente, poder constituído ou reformador, por outro lado, é manifestação ulterior (secundária) do poder constituinte originário, estando por ele limitado (vide item seguinte).

Através da manifestação constituinte derivada exterioriza-se a função renovadora das constituições, encarregada de modificar a forma plasmada quando da elaboração primária do texto básico, recriando e inovando a ordem constitucional instituída.

Do poder constituinte originária decorre ainda o poder dos Estados-membros de elaborarem suas constituições, de conformidade com os princípios da Constituição Federal. É o chamado poder constituído decorrente.

Por fim, urge salientar que o caráter dinâmico e prospectivo da ordem jurídica propicia o redimensionamento da realidade normativa, em que as constituições, sem revisões ou emendas, assumem significados novos, expressando uma temporalidade própria, caracterizada por um renovar-se, um refazer-se de soluções que, muitas vezes, não promanam de reformas constitucionais.

Trata-se do fenômeno da mutação constitucional, manifestação de um poder constituinte difuso, concebido como o processo informal de mudança da constituição, por meio do qual são atribuídos novos sentidos, conteúdos até então não ressaltados à letra da constituição, quer através da interpretação, em suas diversas modalidades e métodos, quer por intermédio da construção (construction), bem como dos usos e costumes constitucionais.

4. As emendas constitucionais

Ao lado da revisão (reforma ampla do texto constitucional), as emendas constitucionais constituem uma técnica através da qual se processa a reforma da constituição, verdadeira manifestação do poder constituinte derivado.

É certo que tal atividade está condicionada a limites jurídicos, impostos justamente pelo poder constituinte originário, que é o seu fundamento de autoridade.

  • Tais limites podem ser de ordem:

a) formal: questões referentes ao procedimento, bem mais rígido do que para se alterar as leis em geral. No Brasil, as emendas se submetem a iniciativa reservada (art. 60, inc. I, II e III, CF/88) e ainda deverá ser discutida e votada em cada Casa do Congresso Nacional em dois turnos, com quorum qualificado de três quintos de todos os membros (art. 60, § 2o, CF/88), não podendo a matéria constante de proposta de emenda rejeitada ou havida prejudicada ser objeto de nova proposta na mesma sessão legislativa (art. 60, § 5o, CF/88);

b) circunstancial: não poderá ser editada emenda na vigência de intervenção federal, de estado de defesa ou de estado de sítio (art. 60, § 1o, CF/88). Tecnicamente, não é correto falar que isso seja uma limitação temporal, esta sim ocorrente no caso da Constituição portuguesa de 1933, que só poderia ser revisada periodicamente, de cinco em cinco anos;

c) material: determinadas matérias constituem o núcleo intangível da Constituição, insuscetíveis de modificação via emenda. Podem ser explícitas, como no caso das cláusulas pétreas (art. 60, § 4o, CF/88), e implícitas, que impõem, mesmo sem expressa previsão constitucional, a proibição de alteração do titular dos poderes constituintes originário e reformador, de alteração dos processos de reforma da constituição, das cláusulas pétreas e demais limitações (p. ex., estabelecimento de “miniconstituintes”, tal como fora proposto por alguns digníssimos Senadores), bem como de modificação que descaracterize o sistema constitucional vigente.

Dessa forma, violadas as limitações ao poder de reforma, estão sujeitas as emendas constitucionais ao controle de constitucionalidade.

5. Disposições gerais

Disposições constitucionais gerais são normas jurídicas, de acentuado caráter impessoal e abstrato, em cujo regaço se erigem pautas de comportamento amplas, porquanto aplicáveis a situações certas, mutáveis, passageiras e até contingente.

A experiência vivida pelos diversos ordenamentos constitucionais, dotados de constituição escrita, atestam o caráter compromissório das disposições gerais.

No Brasil, todas as Constituições previram disposições gerais, com exceção da Carta de 1937, que simplesmente enunciou o rótulo “Disposições transitórias e finais”.

Quanto à Constituição de 1988, é possível dizer que não ocorreram peculiaridades no que tange à disciplina do assunto. Registre-se, contudo, que o presente Título IX tem servido para o constituinte reformador incluir preceitos decorrentes das emendas constitucionais operadas no texto original da Constituição, alongando cada vez mais o rol de artigos da já extensa CF/88.

6. Disposições transitórias

As disposições transitórias incidem sobre um determinado ato ou fato socioconstitucional relevante. A efemeridade desses preceitos não lhes subtrai a força das disposições permanentes, no que tange à aplicabilidade e cogência, embora localizadas e fixadas em um determinado lapso de tempo, ou até que ocorrida certa condição de exigibilidade fática.

Decisão do STF no RE 161.462-5/SP, rel. Min. Celso de Mello, DJU 10.08.95: EMENTA: “O ADCT, promulgado em 1988 pelo legislador constituinte, qualifica-se, juridicamente, como um estatuto de índole constitucional. A estrutura normativa que nele se acha consubstanciada ostenta, em consequência, a rigidez peculiar às regras inscritas no texto básico da Lei Fundamental da República. Disso decorre o reconhecimento de que inexistem, entre as normas inscritas no ADCT e os preceitos constitucionais da Carta Política, quaisquer desníveis ou desigualdades quanto à intensidade de sua eficácia ou à prevalência de sua autoridade. Situam-se, ambos, no mais elevado grau de positividade jurídica, impondo-se, no plano do ordenamento estatal, enquanto categorias normativas subordinantes, à observância compulsória de todos, especialmente dos órgãos que integram o aparelho do Estado”.

As disposições transitórias veiculam-se através de atos, que se exteriorizam por um conjunto de normas, incumbidas de cuidar do direito transitório ou intertemporal.

Tais atos, convertidos pelo legislador em normas, desempenham efeito integrativo, porquanto procuram conciliar os efeitos da ordem constitucional velha com o produto positivado advindo da manifestação constituinte originária nova.

Nesse contexto, o Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) engloba estipulações quanto às providências a serem adotadas no período de transição entre a ordem constitucional pregressa e a promulgada em 5 de outubro de 1988. Consigna mandamentos que se extinguirão por terem cumprido sua tarefa no tempo e no espaço.

Cumpre registrar que há corrente doutrinária que entende impossível a reforma das disposições transitórias de eficácia exaurida, através da técnica da emenda, pois “muito mais do que mero desvio de competência, é contumélia execrável, vício irremissível, corrosão ao caráter originário, inicial, autônomo e incondicionado do poder constituinte, que as concebeu para durar momentaneamente” (Uadi Lammêgo Bulos).

7. Hermenêutica constitucional e os princípios constitucionais

A superioridade hierárquica, a natureza da linguagem, o conteúdo específico e principiológico e o caráter ético-político são peculiaridades que outorgam à constituição uma essência bem diversa de qualquer outra norma, razão pela qual a sua interpretação exige um instrumental teórico diferente: a chamada hermenêutica especificamente constitucional.

Antes, porém, cumpre esclarecer, brevemente, a diferença entre princípios e regras.  Segundo J. J. Gomes Canotilho, é possível distinguir as duas espécies normativas segundo cinco critérios, quais sejam:

a) grau de abstração: os princípios ostentam um grau de abstração mais elevado que as normas;

b) grau de determinabilidade: na aplicação do caso concreto, os princípios, mais vagos e indeterminados, necessitam de densificação, enquanto as regras são suscetíveis de aplicação direta;

c) caráter de fundamentalidade no sistema: princípios são normas com papel fundamental no ordenamento jurídico, razão pela qual estão predominantemente inseridos na Constituição;

d) proximidade da ideia de direito: os princípios são standards juridicamente vinculantes radicados nas exigências de “justiça” ou na “ideia de direito”, ao passo que as regras podem ser normas vinculantes com um conteúdo apenas funcional;

e) natureza normogenética: os princípios são fundamento das regras, constituindo-lhes a ratio.

Os princípios, espécies do gênero “norma”, exercem papel fundamental dentro do sistema jurídico.  Com efeito, em virtude de seus aspectos funcionais e estruturais, que lhe denotam plasticidade e flexibilidade (Gustavo Zagrebelsky), atuam os princípios como paradigma ético e instrumento do jurista para superar o legalismo e buscar no próprio sistema a solução mais adequada para o caso concreto.

A partir dessa distinção, é importante apontar que a interpretação dos princípios, em especial os de origem constitucional, se orienta por cânones diversos daqueles tradicionalmente utilizados na interpretação das normas, sob pena de padecer na inefetividade.

Com efeito, praticar a interpretação constitucional é diferente de interpretar os princípios de acordo com os preceitos clássicos da hermenêutica jurídica, desenvolvidos em época em que o pensamento jurídico se assentava em bases privatísticas.

Inúmeros equívocos, motivados por vezes por questões ideológicas, vêm sendo cometidos pelos operadores jurídicos na interpretação da Constituição, os quais, desconhecendo suas peculiaridades, acabam por lhe burlar o sentido, alcance e eficácia, em prejuízo da efetividade constitucional.

A partir disso e da constatação de que os princípios constitucionais se encontram em constante estado de potencial colisão uns com os outros, tendo em vista a Constituição de 1988 adotar a fórmula política do Estado Democrático de Direito, que pressupõe a convivência de valores antagônicos, verifica-se a necessidade do emprego do conjunto de princípios de interpretação especificamente constitucional, que tem como finalidade última a efetivação dos direitos fundamentais.

Primeiramente, de um ponto de vista lógico, destaca-se o princípio da supremacia constitucional, que se assenta no pressuposto da superioridade hierárquica da Constituição sobre os demais atos normativos.  Encontra fundamento em duas proposições do constitucionalismo clássico, a saber, na distinção entre poder constituinte e poder constituído e no princípio da rigidez constitucional, que impõem consequentemente uma superioridade material e formal das normas constitucionais.

Pelo princípio da supremacia constitucional, nenhum ato jurídico pode subsistir validamente em contrariedade com a Constituição.  Efetivamente, as normas anteriores e contrárias ao novo comando constitucional são ditas não recepcionadas, ficando revogadas.  Já as normas posteriores que venham de encontro à Constituição devem, através do processo de controle de constitucionalidade, ser declaradas nulas e assim extirpadas do ordenamento jurídico.

Ainda, em respeito ao princípio da supremacia da Constituição, não pode o legislador ordinário deturpar, burlar ou prejudicar o sentido e alcance da norma constitucional.  Sabe-se que o legislador constituinte reservou ao âmbito infraconstitucional a complementação de algumas normas constitucionais, seja por expressa referência a uma lei, complementar ou ordinária, seja pela utilização de termos,  expressões e conceitos inexatos ou equívocos.  Tal atividade, entretanto, está limitada pela supremacia constitucional.

Salienta-se ainda que a própria demora em se editar a lei regulamentadora da Constituição pode gerar a inconstitucionalidade, porquanto a eficácia da norma constitucional jamais pode depender da vontade do legislador infraconstitucional.  Nesse sentido, o juiz, na qualidade de intérprete-guardião da Constituição, no exercício da função jurisdicional, não deve ficar condicionado à intermediação do legislador ou administrador, cabendo-lhe aplicar os princípios constitucionais diretamente, por meio de uma hermenêutica construtiva.

Como decorrência da presunção de constitucionalidade dos atos legislativos, havendo possibilidade de múltiplas interpretações de um dispositivo, deve-se escolher aquela que mantenha harmonia com a Lei Fundamental, mesmo que não seja a que mais evidentemente resulte da leitura do texto.  Trata-se do princípio da interpretação conforme a Constituição, que tem como consequência, além da eleição de uma linha interpretativa, a exclusão expressa das outras interpretações possíveis, que conduziriam a resultado contrastante com a Constituição.  Cuida-se, portanto, de mecanismo de controle de constitucionalidade pela qual se declara ilegítima uma determinada leitura da norma legal.

Tal ideia é complementada pelo princípio da máxima efetividade, também denominado princípio da efetividade constitucional, da eficiência ou da interpretação efetiva, pelo qual a uma norma constitucional deve ser atribuído o sentido que lhe outorgue maior eficácia.  Havendo duas soluções razoáveis, deve o intérprete optar por aquela que trague maior efetividade ao comando constitucional, notadamente quando se tratar de direito ou garantia fundamental, favorecendo especialmente o elemento teleológico.

Grande importância possui também o princípio da unidade da Constituição, em função da qual deve compreender-se a Constituição de maneira sistemática e não de maneira isolada.  Na verdade, a Constituição é o elo que outorga sistematicidade ao ordenamento jurídico, servindo de parâmetro em qualquer processo interpretativo.

Outro princípio, indispensável à interpretação dos direitos fundamentais, é o da proporcionalidade.  A ideia de proporcionalidade, expressão da própria noção de igualdade, é tão antiga quanto a ideia de direito.  Entretanto, após a II Guerra Mundial, tal princípio assumiu dimensão diversa, por meio de construção conjunta da doutrina e jurisprudência alemãs.

Atualmente, recorre-se à proporcionalidade, chamada de “princípio dos princípios”, para resolver a colisão entre princípios constitucionais, aos quais se deve igual obediência, por ocuparem a mesma posição hierárquica, determinando a procura de uma “solução de compromisso”, na qual se respeita mais, em determinada situação, um dos princípios em colisão, buscando desrespeitar ao mínimo o outro, sem contudo ferir-lhe o núcleo essencial. Isto é, no processo de harmonização ou concordância prática, almeja-se conformar os diversos princípios em conflito, de forma que se evite a exclusão total de um ou de alguns deles.

O princípio da proporcionalidade pode ser descrito no trinômio adequação, exigibilidade e proporcionalidade em sentido estrito.  O subprincípio da adequação determina que, dentro do faticamente possível, o meio escolhido se preste para alcançar o fim estabelecido, mostrando-se assim adequado.  O subprincípio da exigibilidade ou da vedação do excesso, por sua vez, impõe que esse meio seja exigível, ou seja, que não haja outro, igualmente eficaz, e menos danoso a direitos fundamentais. Por fim, tem?se o subprincípio da proporcionalidade em sentido estrito, que é a ponderação entre o ônus imposto e o benefício trazido, para mesurar se é justificável a interferência na esfera dos diretos do cidadão.

Conforme já ressaltado, o princípio da proporcionalidade assume o importante papel de servir como parâmetro de controle da constitucionalidade das normas restritivas de direitos fundamentais, bem como para solução de conflitos entre princípios constitucionais.  Percebe-se, pois, que os princípios fundamentais não são absoluto, sofrendo limitações, ditadas pela necessária compatibilização dos direitos fundamentais em latente conflito.

O exercício de um direito fundamental em contraposição ao princípio da proporcionalidade, ou seja, atingindo o núcleo essencial de outro direito fundamental, dá margem ao abuso de direito fundamental.

8. Uma brevíssima história das constituições brasileiras

Nas palavras de Paulo Bonavides, não há falar no Brasil de “crise constitucional”, mas de “crise constituinte”, pois cada governante que assume o poder deseja adaptar a constituição aos seus interesses. Por isso, foram várias as constituições na história brasileira, cabendo traçar um breve resumo, desde a Imperial à atual.

Constituição Política do Império do Brazil (jurada a 25.03.1824): influenciada pelas ideias de Clermont Tonerre e Benjamin Constant, foi a primeira constituição do Brasil independente. Consagrou o Estado unitário, a monarquia constitucional, a existência de um Poder Moderador, a religião católica como oficial do Império e o sufrágio censitário;

Constituição da República dos Estados Unidos do Brazil (promulgada a 24.02.1891): influenciada por Ruy Barbosa, que buscou inspiração na Constituição americana, estabeleceu o Estado federal, com a criação dos Estados-membros, a República, tripartição das funções, separação da Igreja e Estado, criou-se o Supremo Tribunal Federal, o habeas corpus;

Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil (promulgada a 16.07.1934): resultada da revolução constitucionalista paulista de 1932, rompeu com a concepção liberal de Estado, positivando em seu texto elementos socioideológicos. Implantou a Justiça do Trabalho, a Justiça Eleitoral, o voto secreto, o acesso das mulheres à cidadania, constitucionalizou os direitos sociais, institucionalizou o Ministério Público e o Tribunal de Contas;

Constituição dos Estados Unidos do Brasil (decretada a 10.11.1937): a chamada “polaca”, por ter sido uma tradução da Carta ditatorial polonesa de 1935. Instalou o Estado Novo, descaracterizando a autonomia das entidades federadas, concedeu poderes supremos ao Presidente da República, reduziu os direitos e garantias individuais, eliminou a justiça federal de 1a instância. Deveria ter sido objeto de um plebiscito, o qual, entretanto, nunca foi realizado;

Constituição dos Estados Unidos do Brasil (promulgada a 18.09.1946): oriunda da redemocratização resultante da queda de Getúlio Vargas. Restabeleceu o equilíbrio entre os Poderes, os direitos fundamentais, condicionou a propriedade ao bem-estar social;

Constituição do Brasil (promulgada a 24.01.1967): fruto do golpe militar de 1964, foi aprovada apenas formalmente por um Congresso coagido e desfigurado por atos de cassação. Preocupou-se fundamentalmente com a segurança nacional, que condicionada o exercício dos direitos fundamentais;

Emenda Constitucional n. 1 (17.10.1969): acarretou substancial reforma no texto da CF/67, podendo ser caracterizada como uma nova constituição. Trouxe as eleições indiretas para os governos estaduais e a eliminação das imunidades parlamentares materiais e processuais;

Constituição da República Federativa do Brasil (promulgada dia 5 de outubro de 1988): marco da redemocratização, foi elaborada pela Assembleia Nacional Constituinte, convocada em 1985 pela EC n. 26/85, e sofreu sensível influência das Constituições portuguesa, italiana e espanhola. Foi dado maior realce aos direitos e garantias fundamentais e às ordens econômica e social. Criou o Superior Tribunal de Justiça e o mandado de segurança coletivo, o mandado de injunção, o habeas data, a ADIn por omissão, a arguição de descumprimento de preceito fundamental. Vem sendo desfigurada por uma infinita sucessão de emendas constitucionais.

 FONTES PRINCIPAIS: 

  • BULOS, Uadi Lammêgo. Constituição Federal anotada. São Paulo: Saraiva, 2000.

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