Sociologia

A Situação do Negro no Brasil

A identidade de um povo, num Estado nacional, pode se transformar, lentamente, seguindo as modificações históricas ou de forma mais veloz, sobretudo em períodos de guerra ou de grandes transformações locais ou mundiais. Muitas vezes tais mudanças são geradas durante certo tempo e, a partir de algum movimento, tornam-se visíveis.

Assim sendo, para entender o presente, é preciso compreender o que a história significa no passado e para o futuro e, ainda, a diferença entre a história, os pontos de vista históricos e as interpretações da história.

O Estado brasileiro, escravista durante mais de trezentos anos, reestruturado por conceitos republicanos excludentes, impôs e estimulou, ao longo da história, conceitos de nacionalidade que determinaram um discurso cultural distante da realidade multi-cultural do país.

A cultura brasileira, essencialmente permeada por valores femininos, negros, caboclos, indígenas, definida por encontros e conflitos, foi mediada, durante anos, pelo discurso da democracia racial e sua manifestação material legitimada a partir de uma leitura política branca.

A rica diversidade da cultura dos povos de origem europeia aqui recriada, as africanidades brasileiras, as contribuições asiáticas, judias e árabes, as expressões indígenas resultantes dos conflitos da colonização, as características de nossa ‘antropofagia’, nossa identidade construída com referência em uma diversidade hierarquizada -, nem sempre essa dinâmica foi considerada pelo discurso que justifica e teme as desigualdades estruturais.

Situação do negro no BrasilComeça, porém, a ser desenhada uma cultura de democracia participativa, que necessariamente inclui a cidadania cultural. O Brasil, Estado/nação, vive, neste momento, um período privilegiado no que diz respeito às possibilidades de concretizar transformações fundamentais abortadas em vários períodos da história. As profundas transformações dos conceitos de identidade nacional são então amparadas por uma política cultural inclusiva, que começa a se materializar valorizando a diversidade e desestruturando a hierarquia herdada da escravidão.

Espelho, espelho meu….

Em 1814, o governo geral do Rio de Janeiro recomenda ao governador da Bahia:

‘Determina Sua Alteza Real que V. Exa. proíba absolutamente os ajuntamentos de Negros chamados vulgarmente batuques, não só de dia, mas muito particularmente de noite, pois ainda que se lhes permitisse isto para os fazer contentes não deve continuar esta espécie de divertimento, depois de terem abusado tanto dela.’

(Com o aumento das revoltas da escravos e de outros grupos pobres, principalmente a partir do fim do século XVIII, os batuques foram considerados focos de rebelião e esteticamente proibidos)

O Brasil tem a maior população negra fora da África e a segunda maior do planeta. A Nigéria, com uma população estimada de 85 milhões, é o único país do mundo com uma população negra maior que a brasileira.

Responsável pelo maior translado humano da história – entre 3,6 e 5 milhões de africanos foram importados para o Brasil, de várias partes do continente africano -, a escravidão gestou estruturas, relações sociais e econômicas, valores e conceitos, visão de mundo incluindo visão de Estado, que tinham por meta sua permanência, sobrevida e a manutenção dos privilégios resultantes.

Só a partir da década de 1930, com base, principalmente, nas teses sobre a miscigenação e na forma envergonhada de expressão do discurso racista, consolidou-se no país o mito da democracia racial. O que significa que, ainda durante a maior parte deste século, foram inibidas ações de combate ao racismo, a organização cultural e política dos negros brasileiros, e a implantação de políticas para a superação das desigualdades raciais. No período pós-Abolição, a ausência de um sistema legal explícito que definisse as desigualdades e, ainda, as africanidades visíveis da cultura brasileira, serviu como argumento para que o Estado e a sociedade desconsiderassem a necessidade de se criar mecanismos para a inclusão do povo negro no processo de desenvolvimento nacional.

A rica história invisível dos seres escravizados nos vários países africanos, sua recriação cultural, são apenas parte do ser cultural brasileiro. A polícia, a prática da medicina e das outras ciências, a cultura de produção rural e de utilização da terra, a política de imigração, o sistema político, os métodos utilizados para a sistematização dos dados, as relações de produção e de gerenciamento da riqueza, o regime de propriedade e de créditos, o sistema legal e o escolar, o mercado de trabalho, tudo foi estruturado para atender à necessidade de enriquecer os senhores, de controlar o escravo ou, depois, para consolidar e justificar as desigualdades.

Mais de trezentos anos de escravidão, do século XVI até o final do século XIX, como instituição legal, social e econômica, que determinou o estilo de vida do Brasil colônia, representam uma referência histórica fundamental para se compreender as desigualdades raciais no país, e o aprofundamento da hierarquização dos direitos e da própria definição de humanidade, de valor social da pessoa.

O escravo, para que a escravidão se justificasse, não era considerado um ser totalmente humano por nenhuma das instituições, inclusive pela igreja. As práticas culturais e religiosas, a visão de mundo desse conjunto humano foram sistematicamente desqualificadas, apesar de sua integração ao modo de ser nacional, após mais de trezentos anos de convivência cultural, e sendo a sua força de trabalho responsável pelo desenvolvimento da economia. A aparência física dos negros, exceto quando se tratava de servir sexualmente os senhores, foi associada à dos animais e esteticamente desagradável ou inferior. Seu corpo era para o trabalho e sua força utilizada corno a dos animais. A participação nas artes, extremamente relevante sobretudo no século XVIII, pouco ampliou os seus direitos, ou lhes assegurou o exercício da cidadania.

“Durante a escravidão, e mesmo após, as expressões religiosas negras foram descritas por escrivão de polícia a que narrava invasões de terreiros ou derrotas de revoltas, por autoridades eclesiásticas e civis preocupadas em combater a ‘feitiçaria’ e a subversão dos costumes…” –
João José Reis

Se o movimento abolicionista foi longo, heterogêneo e, por fim, vitorioso, a República surgiu como reação ao fim absoluto da escravidão, apesar do engajamento de lideranças negras no movimento republicano.

Várias peças religiosas tomadas dos ‘pretos’, africanos, e dos ‘criolos’, afro-brasileiros, ainda hoje estão nas delegacias, senão foram destruídas ou desapareceram.

Principalmente a partir da promoção, pelo Estado, da imigração europeia subvencionada para substituir a mão-de-obra negra, da criação de status superior de cidadania para os imigrantes recém-chegados em relação aos negros, das promessas do Estado de embranquecer a nação, da participação periférica dos afro-brasileiros no processo de industrialização, da fraca representatividade política, da desqualificação de suas referências culturais, estruturou-se o que pode ser chamado o sistema de exclusão racial informal.

O desejo, a quase que necessidade brasileira de ser uma democracia confundiu-se com o mito desmobilizador longamente cultivado.

Zumbi, mostra a tua cara!

Agora, no final de seu quarto de século, o país passa por profundas transformações. No início dos 1900, representantes do Estado e dos setores dirigentes prometia que este seria um país branco em cem anos, como forma de assegurar presença respeitável nos conclaves internacionais. As projeções para o V Centenário, os cenários desenhados para a o início do próximo milênio, mostram, entretanto, que a diversidade e a expressão afro-brasileira agregam valor ao Brasil no cenário mundial.

Mas, que processos culturais permitirão as imensas possibilidades humanas de valorizar suas diferenças? Que processos transformarão o imaginário social que manifesta perversamente o racismo envergonhado, e se justifica com a afirmação de que aqui não se pratica racismo como lá … ?

Novas referências estão sendo construídas para que a política cultural inclua a riqueza material e imaterial gestada pelos africanos e seus descendentes brasileiros.

Os produtores e criadores negros, os intelectuais, movimentos militantes, todos têm papel relevante nesse processo, e têm sido considerados. Entretanto, ainda não é possível ter certeza da imagem real de Zumbi dos Palmares (enquanto são vários os desenhos que retratam Domingos Jorge Velho) para que, além de ocupar a galeria dos heróis, possamos ter sua foto estampada nas moedas nacionais. Ou ir além das caricaturas de Anastácia e Chica da Silva e, ainda, descobrir a história verdadeira do fim de Luiza Mahin, a mãe de Luiz Gama. Somente diretrizes e investimento político do Estado têm sido capazes de interferir na estrutura dinâmica cultural e de criar mecanismos distributivos para compensar as desigualdades históricas. Isso para que as mudanças não sejam cosméticas.

Cumprindo a agenda atrasada

O ano de 1995, tricentenário da morte de Zumbi dos Palmares, último líder da República de Palmares, quilombo criado em Alagoas, que durou cerca de cem anos e foi destruído em 1694, foi um marco na relação negro – Estado e na cultura do Estado em relação ao negro.

Ao som dos tambores, que no dia 20 de novembro protestavam contra o que tem sido definido como apartheid sem leis, e respondendo às críticas e propostas do movimento social negro, o presidente da República, em um ato no Palácio do Planalto, falou abertamente sobre o racismo, criou o Grupo de Trabalho para a Valorização da População Negra e elegeu a cultura, nominalmente a Fundação Cultural Palmares, como uma das áreas de investimento imediato para iniciar as transformações.

Foi preciso o engajamento pessoal do chefe do Estado para romper a inércia e a tendência à desqualificação política do negro. Sabe o sociólogo Fernando Henrique Cardoso que por decreto não se muda o contexto social, mas que o círculo vicioso precisava ser rompido e que orçamentos, leis e programas refletem os conceitos culturais. Ainda não nomeava ali, porta-vozes confiáveis, intermediários como se costuma fazer – criava, isto sim, espaços de poder para elaboração de propostas e execução, que, embora ainda limitados, representavam um ponto de força na estrutura do governo.

A cultura sempre foi o espaço possível para o exercício da sensibilidade negra, embora essa participação não mudasse o lugar social de seus realizadores. Principalmente antes de a indústria controlar o setor, o talento era limitado pelas condições de vida. Além da matriz cultural brasileira, do imaginário e da visão de mundo serem expressões profundas da africanidade aqui recriada, a expressão através das artes é fundamental, mesmo que descontextualizada.

Programas, projetos, convênios, revisão de conceitos e de sua materialização em apoios e orçamentos estão sendo realizados de forma a se criar um ambiente que permita a realização das mudanças estruturais projetadas pelos abolicionistas, adequadas a este final de milênio.

As comunidades negras rurais organizadas em quilombos, importantes celeiros culturais por sua história, com prática coletiva de produção diversificada, relação harmônica com o meio ambiente, foram identificadas. Estão sendo demarcadas as suas terras e eles estão recebendo os seus títulos de posse. São territórios culturais, são territórios habitados pelas mesmas famílias por vezes há mais de trezentos anos, vulneráveis devido à ausência, até então, de sua inclusão nos projetos fundiários do governo. Suas populações estão sendo capacitadas para potencializar os recursos e programas pilotos específicos de educação e saúde estão sendo realizados.

Programas de apoio ao desenvolvimento de uma dramaturgia afro-brasileira e capacitação para a representação adequada desse grupo humano estão sendo realizados em todo o país. São re-qualificados técnicos em comunicação, roteiristas, atores, diretores, artistas gráficos, através de convênios de várias naturezas.

A invisibilidade, ou a exposição desqualificada dos negros e de sua cultura, eram motivo para a baixa autoestima, tanto dessa população quanto dos brasileiros em geral, na sua grande maioria afro-descendentes.

O mapa da produção cultural negra e de sua história urbana e rural está sendo organizado e já parcialmente disponibilizado através dos meios informatizados. A história hoje disponível apenas em acervos fechados ou de difícil acesso, também no exterior, às vezes fragmentada, está sendo organizada em um banco de dados que inclui toda a diversidade e inteligência negra brasileira. Peças religiosas estão sendo identificadas e devolvidas aos seus proprietários, quando não são doadas para o acervo. Sítios arqueológicos, como a serra da Barriga, e áreas de antigos quilombos estão sendo estudadas. A história da língua portuguesa no país, da perda das línguas de origem africana e da ‘invenção’ da língua que falamos em todo o território nacional, está sendo sistematizada. A vida de mulheres como Chica da Silva, Carolina de Jesus, Luiza Mahin; a competência e o desencanto político de abolicionistas como André Rebouças, Joaquim Nabuco e Luís Gama, que pensavam o desenvolvimento brasileiro; Machado de Assis; as irmandades; os terreiros e a ação dos seus líderes espirituais; a sensibilidade e o universo contraditório dos cientistas; os conceitos de produção diversificada, em oposição às plantations, desenvolvido por muitos quilombos; o trabalho sofisticado com metais – toda essa riqueza começa a estar disponível em várias linguagens para a nação que não conhece a trajetória ancestral de, no mínimo, quarenta e cinco por cento de sua população.

A projeção da cultura brasileira no exterior tem sido objeto de ações de difusão que se desdobram em promoção da imagem do país, valorizando o multiculturalismo e o intercâmbio cultural. A pluralidade nacional começa a ser adequadamente representada e a presença de artistas afro-brasileiros começa a ser mais diversificada no mercado.

O marco físico e, ao mesmo tempo simbólico, da nova postura do governo é a criação do Centro Nacional de Informação e Referência da Cultura Negra.

A compreensão de que a falta de informação mantém a população negras estagnada nos espaços sociais inferiores, por vezes indiferente a possibilidades transformadoras e, ainda, que os cidadãos de todas as origens precisam ter referências para que se orgulhem das nossas africanidades, levou o governo, através da Fundação Cultural Palmares, a desenvolver e a implantar tal projeto.

O Centro Nacional de Informação e Referência da Cultura Negra, cuja placa da pedra fundamental foi assinada pelos presidentes Nelson Mandela e Fernando Henrique Cardoso, será inaugurado no marco do V Centenário do Descobrimento do Brasil, na capital federal, com o objetivo de ampliar a capacidade de participação dos afro-brasileiros no processo de desenvolvimento humano, científico e tecnológico do país. O diálogo cultural com a África e com os países multirraciais ganha novo conteúdo a partir dessa iniciativa.

O reconhecimento da importância da cultura negra no dia-a-dia nacional e de suas dinâmicas positivas como modelo civilizatório tem se expandido. Sua essência musical, a capacidade desse coletivo de transformar condições adversas em fatores de desenvolvimento humano e alegria, sua estética rica em diversidade, sua religiosidade inclusiva, passam a ser percebidas no conjunto da nação como elementos positivos da nossa diversidade.

O sistema de valores culturais do Estado, ao incluir a história do negro, tem se transformado e exigido novas reflexões, novo vocabulário, o desenvolvimento de novos conceitos de cidadania e, sobretudo, o início de mais respeito por essas novas vozes num cenário que nunca foi representativo dessa pluralidade.

Os projetos apoiados pelo Fundo Nacional de Cultura, pelas leis do mecenato, para obras de conservação e preservação do patrimônio, têm, devido ao engajamento pessoal do ministro Francisco Weffort, mais e mais incluído o patrimônio afro-brasileiro. As ações nos Estados e municípios estão sendo estimuladas a considerar a diversidade local. Dirigentes locais começam a perceber que o patrimônio criado pelos negros gera recursos e visibilidade para suas unidades administrativas e que, portanto, os produtores de tal riqueza devem ser considerados.

Política multi-cultural

A nova política cultural brasileira cria imensas possibilidades e muitas demandas para o Estado e para a sociedade.

O mercado foi motivado, surgiram e foram ampliadas várias publicações destinadas ao público negro. Uma nova estética, mais inclusiva, começa a ser visível na moda. A comunicação, inicialmente a oficial e agora, lentamente, a comercial, começa a tratar o negro como pessoa e a incluir imagens de seres humanos dos vários grupos étnicos.

0 mercado cultural, entretanto, continua excludente e o financiamento a produções negras muito tímidas. Há ainda uma imensa distância entre o discurso cultural e a prática da inclusão. Os produtos do teatro, da música, da dança, da literatura, do cinema, da televisão e da pintura, apresentados no cotidiano, estão longe de refletir a dinâmica social. Os produtores, com referência nos conceitos criados pelo mito da democracia racial, tratam o negro como segmento, de forma descontextualizada e eventual.

Por sua vez, os movimentos negros, que motivaram com seu ativismo histórico as mudanças atuais, têm sido parceiros críticos do Estado e começam a atuar junto a outros setores para aprofundar as transformações e para garantir que a agenda do governo seja agilizada. A descrença nas instituições e a indiferença em relação à representação política começam a serem transformadas no conjunto da população.

Nota-se uma profunda transformação em curso na identidade nacional. A compreensão das africanidades, aqui recriadas como parte do ethos brasileiro, muda as referências e rompe as limitações impostas por um falso eurocentrismo e põe por terra os conceitos de raça e de fragmentação da diversidade. A inclusão valorizada do negro desmobiliza a necessidade de se provar que o diferente é melhor ou pior, além de permitir trocas mais profundas e prazerosas entre os humanos de várias origens.

Entretanto, como os valores do Estado só se transformam através de leis, programas e políticas, estão sendo organizados dados sobre o resultado dos investimentos planejados para o período de 1994 a 1999, a fim de que o próximo plano plurianual inclua metas específicas para a criação de um novo cenário, até o início da próxima década.

A obra civilizatória brasileira – a possibilidade do privilégio do encontro superar as marcas da perversidade e as agruras do caminho percorrido -, começa a ser esculpida ao som dos tambores, com a sabedoria das negras velhas e a elegância da capoeira.

Não vos alerto por represália
Nem cobro meus direitos por vingança.
Só quero
Banir de nossos peitos
Esta goma hereditária e triste
Que muito me magoa
E tanto te envergonha.

Por: Rodrigo Almeida

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