Literatura

Cantigas de amor, amigo, escárnio e maldizer

A primeira época lírica portuguesa é chamada de Trovadorismo e as composições dos trovadores são conhecidas como cantigas. A poesia dos cancioneiros pode dividir-se em lírica e satírica.

As cantigas lírico-amorosas apresentam duas modalidades: as cantigas de amigo, nas quais o poeta põe as palavras na boca de uma mulher, apresentando por isso um eu lírico feminino, e as cantigas de amor, nas quais o poeta fala por si próprio, contendo, por isso, um eu lírico masculino.

As cantigas satíricas também apresentam duas modalidades: as de escárnio e as de maldizer, a serem estudadas à frente.

Cantigas de amor

Nas chamadas cantigas de amor, influenciadas pela arte praticada na região de Provença, na França, impera o tema do amor cortês, isto é, o modo de amar do cortesão, daquele que vivia na corte.

Entre a dama e o cavaleiro, estabelece-se uma relação equivalente à que existia na vida política. A mulher é vista como suserano e o poeta, como vassalo. O cavaleiro se dedica de corpo e alma ao culto da amada, que mantém sempre um comportamento altivo, distante do pretendente.

Representação de uma cantiga e seus elementos.
Iluminura do Cancioneiro da Ajuda (Nobre, jogral com viola de arco, rapariga).

O amor é chamado de cortês ou cavalheiresco, porque coube aos cavaleiros, que formavam a nobreza militar, criar uma nova visão de mundo, que vem a ser a cortesia. Os cavaleiros deveriam se comportar como um cavalheiro, segundo regras rígidas de comportamento, diferenciando-se, desse modo, da plebe.

Entre os trovadores galego-portugueses destacam-se D. Dinis (1261–1325), também conhecido como “rei trovador”. A ele são atribuídas as autorias de 138 cantigas.

Veja um exemplo de cantiga de amor.

Estes meus olhos nunca perderan,
senhor, gran coyta, mentr’ eu vivo fôr;
e direy-vos, fremosa mia senhor,
d’estes meus olhos a coyta que an:
choran e cegan, quand’alguen non veen,
e ora cegan por alguen que veen.

Guisado teen de nunca perder
meus olhos coyta e meu coraçon,
e estas coytas, senhor, mias son:
mays los meus olhos, por alguen veer,
choran e cegan, quand’alguen non veen,
e ora cegan por alguen que veen.

E nunca ja poderey aver ben,
poys que amor já non quer nen quer Deus;
mays os cativos d’estes olhos meus
morrerán sempre por veer alguen:
choran e cegan, quand’alguen non veen,
e ora cegan por alguen que veen.

Cantigas de amigo

As cantigas de amigo, originárias da Península Ibérica, abordam o universo da cultura popular rural. “Amigo” significa, no contexto das cantigas, “amante” ou “namorado”. Quem fala é uma mulher do povo, que lamenta a ausência de seu amado. Quanto à forma, elas apresentam uma riqueza superior às cantigas de amor.

Apesar de a voz lírica do poema ser feminina, o trovador que escreve os versos é sempre um homem, o que faz com que apareça, nos poemas, a ideia masculina sobre a saudade e o amor, temas das cantigas de amigo.

Apesar de aparecer o sentimento de saudade, o tom das cantigas é de felicidade, porque, afinal, o amor de que se fala, apesar de distante, é real.

O espaço do campo retratado nessas cantigas tem grande importância, já que a natureza é retratada de maneira a se perceber uma grande intimidade com ela, como se as águas dos rios, os pássaros, as flores, a luz do dia estivessem ligados por afinidade mágica com as pessoas.

Uma cantiga de amigo pode ser chamada de paralelística, se as estrofes pares repetirem as ideias das estrofes ímpares com ligeiras modificações. Se a cantiga tiver um verso repetido, diz-se que se trata de uma cantiga de refrão. Normalmente, elas são paralelísticas e com refrão. Vejamos um exemplo.

Ai flores, ai, flores do verde pino,
se sabedes novas do meu amigo?
ai, Deus, e u é?

Ai flores, ai flores do verde ramo,
se sabedes novas do meu amado?
ai, Deus, e u é?

Se sabedes novas do meu amigo,
aquel que mentiu do que pos comigo?
ai, Deus, e u é?

Se sabedes novas do meu amado,
aquel que mentiu do que mi a jurado?
ai, Deus, e u é?

Vós me perguntades polo voss’amigo?
E eu ben vos digo que é viv’ e sano
ai, Deus, e u é?

Vós me perguntades polo voss’amado?
E eu ben vos digo que é viv’e sano
ai, Deus, e u é?

Vocabulário

pino: pinheiro
novas: notícias
e u é?: e onde ele está?
do que pôs comigo: sobre aquilo que combinou comigo (isto é, o encontro sob os pinheiros).
preguntades: perguntais
polo: pelo
que é san’e vivo: que está são (com saúde e vivo).
e seera vosc’ant’o prazo saído (passado): e estará convosco antes de terminar o prazo combinado.

Cantigas de escárnio e de maldizer

Os Cancioneiros da Vaticana e da Biblioteca Nacional de Lisboa possuem muitas cantigas que tratam de aspectos específicos da vida na corte, satirizando o comportamento social de algumas pessoas. Essas cantigas são classificadas como cantigas de escárnio e cantigas de maldizer.

A Cantiga de escárnio é a sátira indireta, sutil, irônica, sarcástica, evitando-se citar o nome da pessoa-alvo da zombaria. Veja o exemplo.

De um certo cavaleiro sei eu, por caridade,
que nos ajudaria a matar tal saudade.
Deixai-me que vos diga em nome da verdade:
Não é rei nem é conde mas outra potestade,
que não direi, que direi, que não direi…”

Pero da Ponte

A cantiga de maldizer é a sátira direta, desbocada, vulgar, grosseira, chula, por vezes obscena ou pornográfica, chegando a citar o nome da pessoa-alvo da sátira. No exemplo abaixo, o autor faz uma depreciação à imagem de um trovador, considerando-o literariamente fraco.

Trovas não fazeis como provençal
mas como Bernaldo o de Bonaval.
O vosso trovar não é natural.
Ai de vós, como ele e o demo aprendestes.
Em trovardes mal vejo eu o sinal
das loucas ideias em que empreendestes.

Dom Afonso X, o Sábio

Para facilitar o entendimento, façamos a comparação a seguir.

Cantiga de escárnio

  • sátira indireta
  • procura não revelar o nome da pessoa satirizada
  • crítica irônica

Cantiga de maldizer

  • sátira direta
  • revela o nome da pessoa satirizada
  • crítica grosseira

Bibliografia:

GUILHADE, João Garcia de. Apud MOISÉS, Massaud. A literatura portuguesa através dos textos.

SARAIVA, Antônio José; LOPES, Oscar. História da literatura portuguesa. Santos: Martins Fontes, s.d.

Por: Luciana Marques de Carvalho

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