Literatura

Humanismo

O século XVI, econômica e politicamente, caracterizou-se por seu aspecto revolucionário, cujos reflexos se expandiram no pensamento e na estética. Em consequência, surgiu uma nova visão do homem. A exaltação do valor humano, como meio e finalidade, fundamentou o chamado Humanismo Renascentista, que perseguida o ideal de reviver a antiguidade clássica, considerada um modelo uniforme.

Embora os humanistas julgassem os séculos que os precederam obscuros e bárbaros, é necessário lembrar que o humanismo percorreu caminhos inovadores e fecundos, calcados no passado medieval. Portanto a revolução espiritual e artística do século XVI apoiou-se, sem dúvida, em realizações anteriores.

1. O Humanismo

Fala-se em humanismo sempre que o valor fundamental de uma doutrina é a pessoa humana, o sentimento, a originalidade e a superioridade do homem sobre as forças obscuras da natureza.

Essa palavra, entretanto, possuí uma conotação histórica, localizada no tempo e no espaço: designa um movimento estético, filosófico e religioso que, preparado pelas correntes do pensamento medieval, surgiu na Itália no século XV e difundiu-se através da Europa no século XVI, caracterizando-se por um esforço em avaliar o homem em sua essência, propondo uma arte de vida em que ele se perpetuasse.

2. Os Fundamentos do Humanismo

O humanismo fundamentou-se inicialmente na herança medieval, mesmo contrapondo-se ao sistema existente. Assim, através dos tempos, a Sagrada Escritura forneceu aos homens uma cosmologia, uma história, uma moral e uma finalidade existencial, enquanto a Idade Média edificara uma filosofia de início submissa à teologia, mas tendendo progressivamente a explicar sobretudo os pontos em que a Bíblia não mais satisfazia a curiosidade do espírito humano. Criou-se então uma ciência que permitiu ao homem compreender o mundo para tentar dominá-lo.

A filosofia e a ciência baseavam-se em Aristóteles, conhecido integralmente a partir do século XIII, por intermédio de tradutores e comentadores árabes e judeus. Através de traduções, conheceu-se uma lógica, um modo racional, uma concepção do conhecimento e um corpo científico.

Tomás de Aquino, frente a um pensamento tão completo e totalmente estranho ao cristianismo, introduziu uma solução global, proclamando a unidade profunda da verdade através do acordo da fé com a razão. Contudo, no fim do século XV, apenas alguns pensadores defendiam o tomismo, pois o nominaIismo de Guilherme D’Occam (1280-1349) passara a dominar os ensinamentos universitários. Para D’Occam, as verdades da fé não comportavam uma análise racional, enquanto a razão, a partir das aparências sensíveis, podia elaborar uma ciência puramente experimental, que nada devia à Escritura. Esse conhecimento individualizava os conceitos que os homens usavam para designar as espécies.

Esse divórcio entre a fé e a razão trouxe inúmeras consequências nos domínios religioso, filosófico e científico, configurando a crise do pensamento medieval, a qual explica a hostilidade dos humanistas à Escolástica e o sucesso dos novos pensamentos.

A fonte mais viva do humanismo talvez seja a redescoberta da Antiguidade. Embora a Idade Média não ignorasse tal período, via-o de modo truncado e deformado. Truncado, porque não conhecia a maior parte da literatura grega, senão através das análises latinas (por exemplo, Homero, através de Virgílio, ou os estoicos, através de Cícero). Deformado, por aquelas obras satisfazerem apenas politicamente as instituições do Estado Romano.

3. A Filosofia Humanista

Com a revelação da filosofia de Platão, avaliaram-se novamente as doutrinas de Aristóteles. Averróis (1126-1189) propôs uma nova interpretação de Aristóteles: a separação total da filosofia e da fé. Em Pádua, Pietro Pompanazzi (1462-1525) fundamentou a doutrina filosófica naturalista. Outros pensadores da Pádua continuaram seus ensinamentos, que introduziram no universo um estrito determinismo, não cedendo lugar à intervenção divina. O averroísmo paduano foi bastante importante durante todo o século, influenciando desde Rabelais a Copérnico.

Entretanto a verdadeira filosofia humanista, impregnada pelo pensamento de Platão, consolidou-se com Marsilo Ficino (1433-1499), protegido por mecenas como Cosme e Lourenço, o Magnífico. Ficino escreveu a Teologia Platônica, em que criou uma ontologia para o neoplatonismo:

“Deus é o ser de que emanam todos os outros seres, hierarquizados segundo suas ordens de pureza. As almas austrais e anjos são puras criaturas celestiais, imortais e perfeitas, que asseguram a marcha que compõe o universo incorruptível. Em contraposição, encontra-se o universo material, composto por criaturas e ideias próximas de Deus, que necessitam de formas sensíveis para existir, mas estas formas não são mais que traduções imperfeitas e corruptíveis dos arquétipos divinos”.

Em síntese, no centro do cosmos, o homem era alma imortal, imagem de Deus, criatura privilegiada entre todas, embora sendo material. Sua vocação para o conhecimento ultrapassava o mundo das aparências sensíveis e atingia as ideias, que lhe permitiam alcançar Deus.

Porém o homem podia assemelhar-se a Deus, primeiramente, e depois identificar-se com ele, se Deus o quisesse, pela criação. O homem era, como Deus, um artista universal. O “homem viu bem a ordem dos céus, a origem dos seus movimentos, sua progressão, sua distância e sua ação. Quem poderia, portanto, negar que ele possui o próprio gênio do criador e que seria capaz de moldar os céus, se tivesse os instrumentos e a matéria celeste? O homem é o Deus de todos os seres materiais que ele trata, modifica e transforma”. (MOUSNIER, Roland. História Geral das Civilizações. São Paulo, Difel, v. 9, p. 22)

Essa filosofia, profundamente idealista, baseada na procura do divino, caracterizou o pensamento dos humanistas italianos no fim do século XV e início do século XVI.

4. A Difusão do Pensamento Humanista

As ideias humanistas, apesar das fronteiras e dos conflitos europeus, propagaram-se e, se não atingiram profundamente grande parte dos homens, difundiram-se pela elite intelectual.

A imprensa adquiriu um papel importante nesse sentido. A fundação da oficina de Gutemberg, em 1348, e a invenção de tipos móveis criaram as técnicas necessárias à impressão. Os manuscritos dos primeiros livros humanistas foram largamente difundidos. Nos séculos XV e XVI, multiplicaram-se consideravelmente os centros impressores na Europa, gerando a maior circulação de obras antigas e contemporâneas, que se tornaram veículos fundamentais das ideias humanistas. Ainda se deve considerar a importância das relações permanentes feitas através das viagens e das correspondências, como a de Erasmo na Itália e na Inglaterra.

5. As Propostas Humanistas

O humanismo propôs uma estética em que a contemplação da beleza era o meio superior do conhecimento real. Este, belo, harmonioso e equilibrado, aproximava-se do divino. De todas as belezas naturais, o belo humano era o elemento mais próximo do ideal estético. Estudando o corpo humano, imagem reduzida do mundo e imagem de Deus, descrevendo os sentimentos e as paixões humanas, o artista dava o melhor de seus sentidos, considerando as obras da antiguidade incomparáveis modelos. Essa postura permitiu à arte traduzir os grandes mitos que simbolizavam o destino humano, fosse profano ou santo.

No início, o humanismo voltava-se mais para a literatura; posteriormente passou a influenciar as artes figurativas. A arquitetura traduziu a ordem natural, a harmonia das “divinas proporções” e o equilíbrio das massas. A escultura imortalizou o corpo humano, na sua nudez. Mas foi a pintura, ocupando destacada posição, que recriou a natureza, pois, ao retratar o homem numa infinidade de situações e sentimentos, fixou os grandes momentos da humanidade. Toda a Renascença estruturou-se no idealismo estético.

Tendo revolucionado os antigos conceitos, o humanismo propôs ainda as bases de um novo método científico que estimulou o progresso do conhecimento. Em consequência das influências de Pitágoras, Nicolau Cues (1401-1464) lançou a base do conhecimento matemático, e Leonardo da Vinci, um século antes de Galileu, constatou que “O universo esconde em suas aparências uma espécie de matemática real”. A geometria enriqueceu-se com a trigonometria, já que as exigências do comércio provocaram uma alteração nos métodos de cálculo. A álgebra progrediu igualmente.

Graças aos progressos matemáticos, a astronomia renovou-se. O movimento dos astros contestou o geocentrismo, afirmado por Ptolomeu e pela Escritura. Nicolau Copérnico (1473-1543), baseado em antigos astrônomos, elaborou a revolucionária teoria do heliocentrismo, proposta em sua obra Revolução na Órbita Celeste. “Em torno do Sol, centro do universo, giram as esferas celestes, entre as quais a Terra”.

A física ainda estava submetida aos conceitos de Aristóteles. Contudo vários trabalhos, entre os quais os de Leonardo da Vinci, formalizaram o conhecimento das soluções dos problemas de força, balística e dinâmica dos fluidos, sem entretanto, configurarem uma teoria.

Esses conhecimentos, que enriqueceram o corpo científico, ligam-se intimamente ao grande século das ciências (XVII), em que se destacaram Galileu e Descartes.

Portanto, se a arte foi o meio de se conhecerem os mistérios da natureza, a ciência tornou-se seu instrumento.

6. A Ética

O homem, por ser o centro da reflexão humanista, elaborou uma ética individual e social.

A moral humanista individual repousava sobre o otimisto: criatura privilegiada, o homem era naturalmente bom e estava próximo ao plano divino. Embora essa doutrina se chocasse com a do pecado original, afirmava que a razão humana, Instruída pela filosofia e sustentada pela graça divina, possibilitava a todos a ordem da harmonia da natureza. Assim, a moral individual era o respeito do homem por si mesmo e sua obediência às aspirações naturais e boas que descobria em seu interior.

No plano coletivo e social, essa moral individual preservava a liberdade e tudo aquilo que permitisse ao homem uma escolha racional do bem. Erasmo e Rabelais, nos seus escritos políticos, elaboraram a maneira de governar segundo esta concepção: “O bom príncipe deve se valer do bem comum, deve respeitar os direitos de cada um, deve fazer reinar a paz, renunciar às conquistas ambiciosas, lutar contra o luxo e proteger os pobres”.

Thomas More foi mais longe ao descrever, em sua obra Utopia (1516), uma sociedade ideal. Condenando o absolutismo, por reduzir a liberdade natural dos homens, os privilégios, por estimularem o espírito de proveito, e o poder do dinheiro, concluiu: “Onde a propriedade é um direito individual, todas as coisas se medem pelo dinheiro, não se poderá jamais organizar a justiça e a prosperidade social”.

O humanismo também inspirou o pensamento realista de Nicolau Maquiavel (1469-1527). Em sua obra O Príncipe (1513), contrariando teorias políticas medievais, ele estabeleceu o princípio da autoridade, de sua aquisição e conservação, propondo a noção de poder legítimo: “O poder deve ser tomado pela força, criado pelo direito. Para guardar o seu trono, o príncipe deve criar barreiras, inspirar a estabilidade, eliminar seus inimigos potenciais e sacrificar aqueles que se tornam insubmissos. A razão do Estado é o único motor da ação política”. (M0USN1ER, Roland. A História Geral das Civilizações. v. 9, p. 49). Aqui a ética da liberdade individual proposta pelo humanismo termina em alienação coletiva.

Assim, além de o humanismo construir para o homem o ideal do belo, deu-lhe regras para a vida, meios para dominar o cosmos e ainda estruturou uma teologia. Os humanistas estudaram os manuscritos, compararam-nos e criticaram-nos, retornando ao grego e ao hebreu, para organizar novas versões dos santos textos e novas traduções.

Os humanistas abordaram ainda os mistérios divinos sobre a Trindade e a encarnação, indiferentes às formas dogmáticas. Erasmo, Rabelais e More propuseram que apenas alguns dos dogmas contidos na Escritura bastariam à religião. O resto a construção humana dominava.

Todos esses pensadores consideraram a Igreja uma instituição aceita por Deus para ajudar os homens na salvação, servindo-lhes como exemplo e nunca como punição. Além disso, rejeitaram as superstições, as obrigações tradicionais, aceitando apenas o papel moralista da Igreja, fundado sobre a fé nas mensagens do Evangelho.

Por: Fernando Viniciu B. Silva

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